segunda-feira, 24 de maio de 2021

Entre quase e cais


Completa hoje 70 anos, assim com bainha feita, meu xará de cidade e sobrenome Ricardo de Carvalho Duarte, o Chacal. Poemas que citar não faltam, mas fico com este, justamente pela celebração do ofício poético: "estranho poder o do poeta./ escolhe entre quase e cais/ quais palavras lhe convêm./ depois as empilha papagaio/ e as solta no céu do papel". Peço licença ao querido Chacal para pendurar umas rabiolinhas no papagaio solto e completar que esse estranhíssimo poder não voa só com o poeta específico, voa amplamente com o escritor genérico – a criatura fadada, por ofício, a se embriagar de possibilidades dicionárias, a sofrer vertigens maravilhosas ante a tudidão de verbetes possíveis, e o melhor: o acréscimo dos impossíveis, improváveis, inexistentes. Por mais que o tsunamizem também os sofrimentos da escolha, o escritor anda sempre mergulhado na secreta volúpia de se lambuzar nas opções oceânicas, como um Tio Patinhas linguístico chafurdando em substantivos, adjetivos, advérbios, neologismos dos quais é quaquilionário.

Nomear personagens, por exemplo – que espetáculo, que Disney de indecisões, que piscina deliciosa e enervante de brinquedos! Especialmente nomes femininos, mais tendentes a vir de flor, de pássaro, de estrela, ou mais tendentes a parecer de fada ou elfa ou rainha ou feiticeira ou odalisca (como viver uma vida sem batizar alguém Nashira, Nerine, Caliandra, Nitzah, Yamha, Andalee?), formam um mar tentador o bastante para que se pense quase em traçar um enredo e tecer todo um livro apenas em torno duma boa nomenclatura protagonista. Histórias inteiras são capazes de brotar na condição de simples armação de pipa, simples esqueleto da seda leve e colorida que de fato seduziu os orgulhos do autor. Ah! e sabem uma outra? coisas pequeninas ou bem imensas podem nascer meramente para preencher de carne um belo título. Sim, nada impede que um cronista, romancista, poeta se apaixone com perdição por um título com o qual passa a sonhar, com o qual passa a enxergar seu próprio nome casado numa capa ou numa página, e desenvolva um filho literário que venha a portar o tal batismo – como quem pensa uma criança que combine com a certidão. Não questionem, isso são escritores.

Escritores são isso que se esfalfa e que se delicia com o gigantismo do terreno a ser lavrado. Não basta (eles sabem) vir com toda a planta baixa da narrativa, quem é quem e faz o quê, e acontece quando; é preciso vestir esses quens e quês de comos, é preciso saber se Dandara Martina tem olhos de pradaria ou de avelã, se tem cabelos dum castanho contente ou duma palidez melgaça, se se cobre de sáris variegados ou de calças jeans embaçadas de uso; é preciso construir onde vive Dandara Martina com um desbunde de tons turquesa, com empréstimos do sertão de Riobaldo, com qualificantes urbanos e estrídulos, com sibilares arenosos, onomatopeias de canto de jandaia, perfumes de almíscares ou de conchas. É preciso dar (ou não) um amor a Dandara Martina (ou a Noribel Iolanda?), cobri-la de propósitos ou loucuras, rotinas ou debandadas, revoluções ou burocracias, e também dar-lhe amigos, amigas, amigues, acertar em todos eles um jeito e um sotaque, uma gíria e uma intenção, e decidir-lhes o rumo, o prumo, a prosa, o espírito, o rito, a meta, as horas favoritas, os traumas insolúveis, os passados idos e estados. É preciso arcar com as responsabilidades de empilhar sobre Dandara, Noribel, Martina, Iolanda uma soma incrível de decisões escritoras, e só então empiná-las, completas, coloridas, em céus de papel que já não é necessariamente papel, e em que não há espaço bastante para quase, por ser tudo grande demais.

Escritor, para se alar e soltar, inventa o cais.

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