sábado, 15 de maio de 2021

O mal não é especial


Nestes 110 anos de nascimento do arquiteto e escritor suíço Max Frisch (falecido aos 80 incompletos em 1991), uma de suas observações muito próprias, muito agudas: "Tudo que é humano parece ser um caso especial". Isso ressoa louco na cabeça a cada vez que um ato nos emudece, nos engasga, como os desoladores acontecimentos relativos aos pequenos Henry, Gael e os três bebês de Santa Catarina; a náusea, o refluxo não nos querem permitir a aceitação de que não, não se trata de casos especiais, trata-se de desdobramentos do que é diuturnamente construído sob nossas barbas e debaixo de nossos olhos. Pessoas de comportamento ilibado à flor das águas que assassinam/torturam crianças por motivos de ódio não tratado, de ressentimentos regados com dinheiro e armas, de psicoses circundadas de indiferença, de egos encorajados a desejar e executar sem se sentir limitados por detalhes como a vida alheia. Pessoas, também – para lembrar as não menos chocantes histórias de George Floyd, João Alberto Silveira (morto por "seguranças" do Carrefour em novembro passado), Yan e Bruno Barros (mortos em fins de abril num Atakarejo de Salvador), as vítimas do Jacarezinho, quantos mais? –, pessoas também que barateiam sistematicamente uma determinada cor e uma determinada classe social como características de cidadãos descartáveis; pessoas que se sentem confortáveis para agredir e eliminar outras aos olhos do público, em plena luz do dia, simplíssimo assim. Pessoas às vezes do nosso prédio, da nossa família, que no elevador dão boa-tarde educadamente e atrás do número do apartamento espancam a esposa e os filhos, aterrorizam, molestam, violentam, contam piada machista, assediam a empregada, mantêm em regime de escravidão a empregada. Podem não ter calhado de ir ainda para o Fantástico, mas não é indo para o Fantástico que se tornam ou tornarão casos especiais. NÃO SÃO casos especiais; são humanos fazendo humanices ao-vivomente, a semana toda.

"Credo! dizer que essas criaturas são humanas!" Olha: se até o fechamento da postagem não mudaram de DNA, são humanas, vai lá tirar satisfações com a biologia. "Mas então quer dizer que os humanos são todos assim??" Deus me livre e guarde, lógico que não, eu não afirmei nem afirmaria isso; afirmo porém uma obviedade (duas, aliás): humanos PODEM ser assim, e SÓ HUMANOS PODEM ser assim. É ululante que a maioria não mata, não tortura, não estupra, não escraviza, sequer fura fila ou deixa de devolver o que veio a mais no troco. Ou seja: a maioria é bastante decente e como tal permanecerá, do contrário já teríamos tacado o porrete nas cabeças uns dos outros e estaríamos extintos há milênios, em vez de irmos evoluindo aos trancos e nos reproduzindo consistentemente. O fato de a decência ser majoritária, no entanto, não exime a espécie do horror minoritário; se não somos intrinsecamente maus, somos maus TAMBÉM – sem chance de alegarmos, alecrins douraditos, que isso não nos pertence.

Não é para vivermos amargurados e desiludidos do universo, enxergando um Assassino do Zodíaco em cada vizinho, que precisamos assumir o quanto isso nos pertence. É para, acabando com a mitologia do caso especial, acabarmos consequentemente com o afã da resposta individual – pune o monstro! isola o monstro! cancela o monstro! –, com o fingimento de que o monstro é uma aberração autoparida e não tem nada a ver com a coletividade, da qual é uma excrescência. O monstro não é uma excrescência, migos, o monstro está INSERIDO em todos os trâmites da coletividade: sente, chora, dorme, come, só não vou dizer que ama porque acho duvidoso, porém certamente acredita que ama algo ou alguém. O "monstro" não veio do Hades, do Tártaro, de Mordor, de multiversos prontos a aliviar nossa carga, conforme preferiríamos; veio de cá, é coisa nossa, é fruto nosso, filho nosso, humano igual, igual, igual, de calça jeans e camiseta de time, de bermuda e boné, de saia acima do joelho e elástico de cabelo no braço, de tênis, de havaianas, de moleca – humaníssima, humaníssimo. É o garoto do 703 que vimos crescer e que não foi dominado por nenhum xenomorfo alojado na barriga: foi dominado, sim, por um fórum qualquer de ódio radicado nas profundezas da web, por um monte de homens e garotos semelhantes a ele, não observados como ele enquanto se tornavam machistas, misóginos, homofóbicos, racistas, supremacistas, armamentistas. É a colega que sempre foi muito atenciosa, muito delicada no serviço, e que – crescida numa família na qual todos fizeram vista grossa para os abusos que sofria – repete o ciclo ao não reagir contra abusos que os filhos talvez sofram. É o famigerado tio do churrasco, eterno aguardado e bonacheirão da festa, que nos belisca amavelmente as bochechas desde que tínhamos cinco anos e que hoje apoia políticas genocidas e chacinas em comunidades, porque sua ótima educação de antigamente não conseguia ir muito além de estrofes de hino e afluentes da margem esquerda do Amazonas. Não é um Jason, um Freddy, um Jabba nojento e alienígena, uma entidade esvurmada dos subterrâneos de Nova York ou manifestada numa geladeira, não, senhores: é sempre uma criatura humanéééééérrima que respirou em nosso mesmo bairro, frequentou a mesma padaria, quiçá a mesma igreja, e foi amamentada pela mesmelelessíssima sociedade doente, competitiva, bélica, preconceituosa em cujo colo passeamos. A diferença entre nós e eles, os "monstros" de suposta exceção, vai ver foi a sorte de um núcleo familiar mais esclarecido e amoroso, uma turma de escola menos briguenta, um numerinho no CEP, uma dobra nesta e não na outra esquina. Nós os conhecemos, podíamos sê-los, eles podiam ser-nos, talvez o tenham sido; nunca foram assim tão outros em relação a nós.

Pertencem-nos – para que estejamos dia e noite atentos à não fabricação de outros deles.

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