sexta-feira, 7 de maio de 2021

Paralisados do tempo

São 55 anos, hoje, da morte do extraordinário Stanisław Jerzy Lec, poeta e aforista polonês que já seria notável até sem o enorme talento das letras, por ter conseguido escapar de um campo de concentração vestido com o uniforme inimigo (aaaah, como não amar um sujeito que fez aquela corja nojenta de trouxa; vejam mentalmente aqui, por gentileza, 56 emojis com olhitos de coração). Homem de engenho e arte que era, Lec gestou uma série de frases maravilhosas – feito esta que copio e que assenta justinho na gente como se já a houvéssemos pensado sem nos darmos conta: "Tantas pessoas vivem numa rotina tão exata, que é difícil de se acreditar que elas vivem pela primeira vez".

Menino, não é que é? Tem um povo que carambolas, parece que já nasceu profissionalizado na arte de fazer um determinado quê ao molho de um determinado como, e tudo indica que acha im-pos-sí-vel a receita ser minimamente outra – com outros horários, outras rotas, outros sabores. Aparentemente é uma certeza ferrenha até a última molécula de queratina que guia essa gente; eles só podem estar há dez milênios aperfeiçoando os ensinamentos do mesmo workshop, como ourives tomados pelo êxtase de uma lapidação milimétrica. Só que não. Não há paixão, não há certeza: o que há mais provavelmente é um imenso cansaço, este sim tão profundo que quase convence como herança de várias eras, como fardo de gerações acrescido em toneladas ombro após ombro. Se de paixão se tratasse, existiria mobilidade – a paixão é criativa, inquieta, faminta, insossegável –, mas justamente porque o modo passional está off é que o piloto automático agarra o leme cotidiano e lá fica, doentio em sua vontade anêmica que tem somente o exato combustível de estar, mais nada. Não que seja ruim toda e qualquer disciplina, obviamente; uma mínima organização dos dias devemos ter ou criar, sob pena de recair num outro self-esquecimento em versão descompensada que acaba indicando um igual marasmo de autoestima: tanto 100% de ordem quanto 100% de desordem são próprios de um coração que não se pensa, não deseja pensar-se. O equilíbrio é o habitat da escolha. A chance de evolução pessoal vem temperada de temperança.

Pior mesmo, em termos de rotineirices, está longe de ser o gesto repetido: bilhãomente pior é a ideia enjaulada em si mesma, escrava de ir e vir dentro das mesmas "causas" e "efeitos", fadada hoje e amanhã e depois às mesmas "conclusões". A intervenção policial chacinenta que tivemos ontem no Rio gerou reações, nessa gente de ideia marasmática (se de reações podemos chamar uns reflexos e esgares mecânicos que não diferem dos movimentos zumbis), muito ilustrativas do pensamento que permanece moscando e moscando o vidro da janela, insistindo e insistindo em sair por onde JÁ SE VIU que não existe saída. Dá um misto de náusea, ódio e comiseração ver a galera autointitulada de bem celebrando um morticínio, como se além de inominavelmente cruel uma tal ação não fosse perfeitamente inútil no combate àquilo que se afirma combater. Quem melhor formulou as interrogações devidas ao horror foi, em vídeo dilacerante, o jovem advogado Joel Luiz Costa, morador da comunidade enlutada: "Isso acabou com o tráfico de drogas? isso vai acabar com o tráfico de drogas? a partir de amanhã não vai ter mais droga sendo vendida nas vielas do Jacarezinho porque 25 pessoas foram mortas?". Conhecemos bem – nós, os que tivemos o estômago embrulhado pelo massacre – a resposta a essas questões infelizmente retóricas; e os donos dos estômagos que passaram incólumes simplesmente don't give a damn, que lhes importa saber que a tal "guerra às drogas" nunca foi de fato às drogas e nunca deu qualquer resultado, nesses moldes, em país algum? Os de ideia parada e lamacenta não querem trocar a água da ideia, não querem renovar a opinião, não querem ganhar o compromisso de tirar neurônios da rotina pasmacenta de conteúdos mastigados, afirmações desconexas, asneiras formulaicas, programas pinga-sangue; querem odiar, só – odiar (lhes) é mais agradável, mais rápido, não exige absolutamente nenhum talento (aliás, quanto menos talento melhor) e ainda lhes permite fingir que há alguma emoção ou propósito em suas pseudoconvicções emboloradas; vejam que pechincha.

Sob vênia do poeta, obrigo-me a emendar que não apenas não se acredita que os paralisados do tempo estejam vivendo pela primeira vez; esses pensamentos de cripta estão, sobretudo, na vibe de quem espera acelerar o mais possível a vivência da última.

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