terça-feira, 4 de maio de 2021

Você-precisers


Adorei muitão e compartilhei feliz um quadrinho do @ChargesdoNiniu (não sei onde ficam as maiúsculas da arroba, mas a ideia é essa), em que um dos personagens diz ao outro: "Você precisa aproveitar a vida!", ao que o segundo responde: "Já faço isso. Só que meu jeito de aproveitar é diferente do seu". Poucas palavras e sábias. A não ser por questões muito indiscutíveis de cidadania, civilidade, saúde – você precisa ir ao médico, você precisa se hidratar, você precisa usar a máscara, você precisa respeitar o seu lugar na fila, você precisa declarar no prazo o Imposto de Renda –, nada é tão entojoso quanto um você precisa seguido por uma declaração doutrinatória a respeito da agenda e da felicidade alheias. Lhassó, amiguito: eu não preciso nada que não seja obrigação de trabalho a cumprir, conta a pagar, exame a fazer, remédio a engolir, gente a respeitar. Eu não preciso usar maquiagem, salvo se for atriz e a personagem pedir; eu não preciso ver o filme ganhador do Oscar (ou qualquer outro), exceto se consistir exatamente nisso a minha profissão; eu não preciso ter WhatsApp – gente, existe e-mail, existe Messenger; qual a dificuldade? –, uma vez não sendo médica nem mãe nem ninguém de quem a vida ou a morte de uma criatura possa depender exclusivamente e de imediato. "Ué, mas facilita." Facilitar não é fazer-se indispensável, senão só me dificulta. Sosseguem, seus viciados em necessidade e urgência.

Um dos piores emprecisadores da existência alheia é direitinho esse do cartum, o gourmet de lazeres e propósitos, constantemente empenhado em que outras vidas tenham o Grande Sentido. Suas espécies são diversas, vão desde a tia dos namoradinhos – "E aí, e os namoradinhos? Aproveita agora, idade boa!" –, que faz ao longo dos anos as devidas atualizações para tia do casamento, tia do filhinho e tia do mais um filhinho, até o coach autocontratado, cuja missão crucial no planeta parece ser a de abduzir suas vítimas para uma quase seita de dicas infalíveis. Não afirmo que os você-precisers sejam inevitavelmente empatadores e importunos, de modo algum; muitos são, inclusive, a corda que desce um baldinho de objetivos frescos ao fundo do poço, onde se encontram alguns amigos isentos de toda luz e de todo estímulo; e outros tantos são, senão isso, ao menos o empurrãozito de energia e vontade que pontapeia uma carreira, um hobby, uma viagem transformadora, um casal talhado para ser. Abençoados esses – os que cuidam de seus cuidáveis com uma alquimia bem certa de afastância e se-metência, os que sentem finamente até onde podem ser incentivo sem forçar nenhuma barra, ou forçando só as barras estritamente necessárias; mesmo que volta e meia venham a parecer azucrinantes em sua intervenção, estes-uns agem com aquelas intenções sinceramente boas que não enchem o inferno, já que é de amor e não de vaidade sua insistência. Não, os você-precisers que ninguém merece são de outra laia, são satélites buscando satélites – insistência de vaidade, não de amor. Garantir que o outro seja ou esteja feliz lhes é secundário; querem mesmo é ter razão.

Relativamente à reprodução humana, um você-preciser raiz é em geral pleníssimo de convicções: você só vai entender o amor quando tiver um filho, você vai se arrepender se não tiver, você não vai ter quem cuide de você na velhice (não é encantador esse conceito de gerar seus futuros enfermeiros não remunerados?). Evidentemente o opinador serial não leva em conta a total desvocação de algumas – tipo euzinha – para a maternidade, nem considera que as prioridades diferem em escalas colossais: acredita, ou acredita acreditar, que todas as humanas são cortadas pelo mesmo molde nesse quesito, sem admitir que a coisa é tão absurda quanto atribuir às mulheres um gosto idêntico em cores, sabores, cheiros, músicas, características do parceiro ou da parceira. Você-precisers também curtem bastante (a charge o ilustra) determinar fontes específicas de alegria para outrens, normalmente relacionadas aos clichês da balada, da bebida, da praia, da pegação – enquanto os alguéns tipo euzinha têm como habitat natural as bibliotecas, os sebos e o afastamento deslumbradamente feliz de tudo quanto seja ajuntamento; poucas coisas me amargariam mais a existência do que uma rotina exterior e rolezeira. E os você-precisers em versão guia turístico? Aff; é só a gente mencionar incauto que vai visitar tal ou tal país e lá vem roteiro descarrilado – vai aqui, vai ali, esse é passeio obrigatório, se não entrar naquela loja é como se não tivesse ido à cidade. Dicas de viagem são certamente preciosas, porém convenhamos: há o modo elegante "se quiser umas sugestões, eu depois anoto para você" e há o despejo inconvidado de tens-que-tens-que em cascata, infalivelmente para impressionar a audiência. Existe, claro, o ímpeto de apontar as atrações mais bafônicas para aqueles a quem se conhecem bem as preferências (adianta alguém recomendar para mim a maior Chanel do universo, se sou das feiras de rua?), e com quem se tem a mais esmagante intimidade; fora isso, eita troço uó.

Mas o você-preciser que mais do que todos, ever & ever, se supera na arte de aporrinhar a paciência é o feedbackeiro, o que COBRA opinião sobre o produto oferecido que nem loja virtual: não apenas nos mete a sugestão goela abaixo como ainda quer DEVOLUTIVA do bagulho. Aí parei. Não peço muito, peço somente que os influencers selvagens me deixem na paz de minhas calmas descobertas, meus amores; custa? Custa nada. Na vida, sou aquela que suspira, ardente, por NEM PRECISAR dizer que só está dando uma olhadinha.

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