segunda-feira, 3 de maio de 2021

Na centésima primeira


Hoje faria 172 anos, se a expectativa de vida humana fosse compatível com as nossas justas ambições (SIM, Paulo Guedes, quero atingir o centenário, e se possível dois; ENGULA sem água a sua necropolítica), um sujeito interessante chamado Jacob Riis. Riis nasceu na Dinamarca, terceiro duma ninhada de quinze irmãos – entre os quais só ele, uma irmã de sangue e uma adotiva atingiram vivos o século XX. Aos 21, o rapaz migrou para os EUA e foi lá que, para encurtar conversa, acabou se tornando um mui prolífico jornalista e fotógrafo de documentário social; seus registros da pobreza existente em Nova York tiveram um enorme peso nos esforços de restruturação urbana entre fins do século retrasado e o início do passado. E Riis não teve apenas sua importância no combate às más condições de vida na cidade (embora não fosse de modo algum um canonizável, já que não estava isento de ideias de meritocracia e racismo pseudocientífico; panos não hão de ser passados aqui): foi também considerado um dos pais da fotografia, por ter adotado cedinhamente o uso do flash. Entre seus cliques, acho especialmente dilacerante aquele que ilustra cá o texto, e que retrata adormecidas três crianças sem-teto de Nova York; impossível não ver ali a influência da formação inicial do fotógrafo, cujo pai o estimulava a ler – inclusive para aperfeiçoamento na língua inglesa – a revista literária editada por Charles Dickens.

Mas não quero somente citar fotos, quero citar umas palavras de Jacob Riis que tenho como bastantemente apropriadas para nos consolar um bocadinho nestes tempos de horror: "Quando nada parece dar certo, vou ver o cortador de pedras martelando sua rocha talvez cem vezes, sem que uma única rachadura apareça. Mas na centésima primeira martelada a pedra se abre em duas, e eu sei que não foi aquela que conseguiu isso, mas todas as que vieram antes". Valeu, Riis, estamos precisando com URGÊNCIA recuperar a inteireza da fé em cada uma de nossas marteladas, que tão inúteis nos têm parecido nestes dias de barbárie oficial. Batemos, batemos, batemos esfalfantemente, com uma fúria que aparenta as maiores ingenuidades e as esperanças mais loucas, ao longo de toda a pedreira de horrores: postamos dados carimbados de ciência no Whats, no Face, no Twitter, exaltamos a vacina, tiramos fotos da vacina, tretamos online com negacionistas ociosos, tentamos a didática, a energia, a racionalidade, a chantagem emocional, berramos ainda que virtualmente contra cada absurdo, fazemos campanhas, vaquinhas, debates, lives, arrecadações. Divulgamos eventos (cada um em sua casa, que somos responsáveis), recomendamos programas, compartilhamos textos e vídeos, sugerimos especialistas, argumentamos em família, entre amigos, entre colegas, apelamos para memes e charges, tentamos dar alguma publicidade ao belo trabalho de doação de alimentos do MST e do MTST, combatemos a demonização da esquerda, do ensino, da ciência. Escrevemos, papeamos, trocamos mensagens, trocamos informações, muito e sempre teimosos de desamassar com nosso martelinho de ouro os pensamentos que andam por aí danificados, circulando pelo país numa lata-velharia acachapante – e encontramos a frustração inevitável, a desolação cotidiana, ante a impressão de que gritamos no deserto feito um São João desbatizado de Batista e retachado de Comunista.

PARECE que não adianta nada; mas adianta. É que "há um milagre que não estamos vendo" quando nada acontece, já diria Guimarães Rosa. Há pelo menos UMA consciência sendo retomada pelo lado luminoso da Força cada vez que voa no ar uma declaração desgracenta do coiso e seus coisinhos – ou acham que ninguém se sentiu ofendido com a insinuação de que devemos morrer logo (sem nem ter gozado a vida após a aposentadoria, que querem empurrar sempre para mais adiante) a fim de não pesarmos sobre as contas públicas? ou acham que nenhum coração que anda de luto por algum parente se fechou em definitivo para a corja que promoveu e celebrou essa morte? Há gente desiludida com o próprio empobrecimento que começou a nos ouvir, e a se lembrar de como viveu bem a partir de 2003: memórias felizes têm extremo talento de persuasão. Há gente meio tonta em termos econômicos, porém sensível em termos ecológicos, que nunca se recuperou de ver queimar o Pantanal e espumou de ódio do "governo" com o recente caso da madeira apreendida. Há gente finalmente convicta de que já perdeu tudo que podia e agora não dá mais para negar, é necessário votar contra os Comensais da Morte. Há gente, sim, numerosa e envergonhada, e nem que seja uma alma por dia – bem-vinda seja; lamentavelmente não é por milagre, conforme preferíamos, mas é por dor, por exaustão, por indignação que elas vêm (ou voltam), é pelo andamento natural da História que elas se apercebem, é como uma onda inexorável que elas romperão o dique martelado dia e noite, dia e noite, e fadado à destruição. Fascismos tombam – todos. Certo como a queda duma árvore de base apodrecida. Enquanto a empurramos e ela não cai, pode até posar de rija e fulgurante; no momento-gota-d'água, soma e cúmulo de todos os anteriores, qualquer brisazinha a derruba.

Queridos! ânimo, ânimo; na centésima primeira atitude talhada para um bem, podem vir os juros das outras cem.

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