domingo, 23 de maio de 2021

O tempo da tartaruga


Hoje é o Dia da Tartaruga, essa criaturinha completamente adorável, e a celebração fofa me resgatou para a memória a frase de Khalil Gibran: "Tartarugas conhecem as estradas melhor do que os coelhos". Por quê? ora; tartarugas – as metáforas, não necessariamente os animais – frequentam com muito mais longueza os detalhes do que há a ser conhecido, seja de fato estrada, seja página, poema, música, história, jogo, mercado, jardim, filme, ponto turístico ou o corpo do outro. Não é que os pequenos (ou grandes) répteis-símbolo estejam fadados à lentidão porque seu organismozinho nasceu limitado e próprio apenas para vagares; seus organismos são capazes sim de agilidades insuspeitas, e, embora certamente nunca possam se comparar a lebres ou guepardos, dão conta com suficiência de suas corriditas urgentes. Mas o pulo do gato – ou o saltinho do cágado – é o fato de essas corriditas não serem tããão urgentes: são evitadas se possível, destacam-se como exceção e não como padrão. O padrão meio natural, meio escolhido é um tempo não emergencial, feito de pausas e doçuras, nada afeito a ansiedades e desesperos.

O tempo da tartaruga se limita com escrever, diria João – com o escrever literário não premido (ou quase não premido) por quaisquer obrigações, bem entendidamente; se limita, aliás, com o geral das formas de arte, que não são paraísos sob o céu, concordo (o ato de criar não é nem um pouco isento de descabelamentos mentais), porém se aproximam tanto quanto possível de um recreio intelectual: pode-se levar a cada momento uma bolada, mas nem por isso se deixa de estar brincando. O tempo da tartaruga se desvia do comercial e tende ao boêmio; dá de ombros – répteis têm ombros? – para o produtivo e se demora no criativo; foge sem pressa do apressado, do apreçado, do aprazado, e se entrega ao prezado com o máximo de minúcias e o mínimo de ressalvas. Fique claro que o tempo da tartaruga não é de irresponsabilidades, a alma simbolizada pelas cascudinhas passa (devagar e) longe da recusa ao cumprimento de metas; são outras, no entanto, as metas: estão igualmente no percorrer e no atingir, ou talvez menos neste do que naquele. Estão atentamente distribuídas pelo caminho, contam com várias estações, vários sublucros, várias minivitórias, preciosos conhecimentos anexos, easter eggs fabulosos, felicidades delicadas. A felicidade no tempo da tartaruga é assim: delicada. Como velocidade não é o forte da menina, o percurso demanda interrupções e em cada interrupção há um canteiro, um parque, um café, um quiosque, um revigor para a viagem que é integralmente (não apenas no final) gozufruída.

No tempo da tartaruga é que podem existir preliminares, cuidados, ternuras, mimos, cafunés; no tempo da tartaruga se calam disputas, competições, cronômetros; no tempo da tartaruga se enxugam caprichadamente as lágrimas, se tocam desveladamente as dores, se conversam (e acertam) compridamente as zangas, se dissolvem gentilmente as desconsolações. É tempo manso, meticuloso, cheio de perserveranças, cheio de suavidades; é o tempo das crianças, dos artistas, dos jardineiros, dos cozinheiros, dos místicos, dos amigos, dos apaixonados autênticos, dos pais e mães loucos pela função de cultivar gente, dos enamorados dum sonho que não seja estritamente ambicioso e numérico. Nesses quandos e durantes de tartaruga pulsa frescor, pulsa oxigênio, abre-se espaço ao passeio, bota-se de escanteio a quebra ou não de recordes, encoraja-se a flânerie, desencoraja-se a maratona, estimula-se a experiência e destitui-se o pódio, elogiam-se a curva e a peripécia e vê-se com muxoxo a linha de chegada. Caminhos palmilhados tartarugamente têm, mesmo, linha de permanecida.

Feito a vida.

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