quarta-feira, 19 de maio de 2021

Pequenas melancolias


Às vezes um cheiro de pomada me traz estranhas memórias de tempos específicos, que no entanto não consigo especificar. Numa idade qualquer estive em uso desse remédio ou de um parecido – e só um pedacinho à toa do velho aroma evoca adolescências vagas, nebulosas. Fui sempre feliz (ou nunca fui infeliz), mas voltar sei lá para onde não é agradável, é confuso, arbitrário, inquieto. Só quero madeleines literais; sua metáfora me constrange a um terror íntimo.

***
O sono, filó nos olhos, nos deixa ternos para tudo.

***
E quando a gente está lendo dessas histórias em dois, três volumes, com trilhardares de peripécias, e fica semiórfão no afastar-se da fase e do ambiente em que mais queríamos o protagonista? O infeliz descarrilhado não volta enquanto não atravessamos com ele mil burocracias escritas, enquanto não o passamos para a outra margem de mil tédios e contrariedades; e enfim nossa orfandade aumenta com o fim da saga. Longos e frequentes sejam os enredos que saibam onde demorar-se.

***
Há um profundo abandono, aliás, em estar onde quer que se esteja sem o livro que temos lido.

***
Há também profundo abandono e profunda desolação no bocejar durante qualquer coisa, mesmo nos restinhos de noite, mesmo nos despojos da festa, do trabalho, do encontro; bocejar é um arriar sincero da vontade, um despregar-se do momento. Bocejo tem seu quê de barco partindo; contém miniaturas de adeus e renúncia.

***
Queria, como queria! que minhas curiosidades eternas entrassem em concórdia com a sensatez da biologia e deixassem de ver, no sono, um desperdício!

***
Nuvens só são aceitáveis à noite quando esparsas, servindo de algodãozinho às joias que piscam num azul quase purificado e mais limpo. Mas esses vapores que cobrem a noite dum cinza rosado! Tem que haver regulamentação dessas nuvens lesa-poéticas, com o mínimo de urgência.

***
Tapo os ouvidos sem querer, ainda que no silêncio de madrugada adentro: musiquinhas interiores, involuntárias, obcecam a paciência feito gremlins.

***
A melancolia eu somente considero viável com propósitos artísticos. Mantida em sua pequena gaiola de romantismo e inofensiva doçura, vá; absorvida pelos poros, entretanto, deixa tudo com aquela essência de poeira ou fumaça que se tem num meio-dia de cidade grande, e que chama à irritação e à desistência. Odeio agudamente a melancolia lívida que cheira a cigarro; tolero-a em rosa, sépia, lilás, melancolia-menina com floreira na janela. É improdutivo demais não ter flores reais nem metafóricas.

***
A melancolia que presta para alguma coisa não se indiferentiza. Ri do nariz vermelho de frio. E veste agasalho.

Nenhum comentário: