sábado, 29 de maio de 2021

Das materialidades do verbo


O fabuloso Gilbert Keith (ou G. K.) Chesterton, hoje completador de 147 anitos, era de uma fraseabilidade tão milionária que fica árduo, para um coração admirador, citá-lo uma vez só; sendo porém impossível derramar no texto tudo quanto o autor cristalizou de maravilhoso, deixo um resignado farelinho que seja: "A ideia que não procura converter-se em palavra é uma má ideia, e a palavra que não procura converter-se em ação é uma má palavra".

Isso resume livros, isso resume sistemas de pensamento inteiros. A portinha de ingresso para uma ideia no mundo é qual? – a palavra, claro, já que parece soberanamente complexo comunicar a outrem qualquer dado, dividir qualquer impressão, imprimir qualquer motivação, instaurar qualquer debate na base da telepatia, do olhar, da energia de sincronicidade ou de algo assim etéreo que o valha. É preciso verbalizar, falar, escrever, detalhar, destrinchar, discutir; a ideia carece sair da confusão primordial em que surge, lambuzada duma placenta feita de intuições, afetos e abstrações, para ser banhada e limpinha pelo verbo; só o verbo, meio cinzel e meio água, bota a ideia próxima do que nasceu para ser, esculpe-a mais perto do claro, do usável, do sólido. Se a ideia não se consegue transmissível, é inútil; se não se deseja transmissível, é potencialmente perigosa.

Mas é como disse o poeta: há também a ideia que atinge o estágio de palavra e daí não pretende se mover um milímetro, encantada com a facilidade de ser e obter, de seduzir e manipular investindo na arte de si mesma. É quando a lábia cínica, preguiçosa, o discursinho malandro pegam as rédeas do esforço em não fazer esforço algum, se especializam sambarilovemente em driblar o compromisso com a realidade incômoda; para que agir, se já tanto tempo é gasto arrudiando, convocando, descrevendo, floreando, exaltando, esmiuçando a ação? Não resisto a me lembrar do personagem de Leonardo DiCaprio em Prenda-me se for capaz, um fraudador inteligentíssimo e talentosíssimo, mas sobretudo uma fraude ambulante que se escorava no papel, na pavonice e no palavrório de ser piloto, médico, advogado e o que mais lhe viesse à telha, sem no entanto ser competente para um ato sequer que prestasse dentro da carreira simulada. Também no longa Grandes olhos (que sina a de Amy Adams, ficar se envolvendo com personagens salafrários e gargantões!) o pseudoartista vivido por Christoph Waltz jogava uma tonelada de letras e carismas na esposa, no mundo, para fantasiar de desculpas múltiplas a sua inabilidade de pincelar uma só telazinha. Ambos os filmes foram extraídos de fatos, o que ajuda a ilustrar quão diabolicamente fascinante sabe ser, na vida social, a palavra impostora e parasita – a palavra especialista em volteios e pole dances e razzle-dazzles em prol e em torno de si, a fim de amaciar de arco-íris sua egoistíssima inaptidão acerca dos outros.

Palavra é a coroa que metonimiza, concreta, a realeza da ideia abstrata; porém coroas apontam simplesmente – coroas não decidem, não governam, nada representam sozinhas para a função real ou o bem-estar súdito. Na palavra pode faiscar a confirmação burocrática da autoridade; mas é a ação que nunca perde a majestade.

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