sexta-feira, 28 de maio de 2021

O meu país também


Completaria hoje quase redondos 99 anos o querido José Craveirinha, um dos poetas maiores de Moçambique – ou um dos moçambicanos maiores da Poesia, o que possivelmente se diria mais em conformidade com falas autobiográficas suas de 1977: "Talvez por causa do meu pai, [eu fui] encontrando no Amor a sublimação de tudo. Mesmo da Pátria. Ou antes: principalmente da Pátria. [...] Escrever poemas, o meu refúgio, o meu país também. Uma necessidade angustiosa e urgente de ser cidadão desse país, muitas vezes altas horas da noite". Nunca terei condições de dimensionar perfeitamente a relação de Craveirinha com seu chão físico, mas consigo compreender com inteirame d'alma essa outra espécie de pertencimento vivenciada pelo poeta, esse carimbo imaterial no passaporte, esse surto de nacionalidade alternativa que tende absolutamente para onde o coração viaja. A gente, eu sei, não é apenas fácil cidadão do lugar palpável em que nasce ou vive; a gente pertence ao que é e ama e escolhe, pertence a uma terra abstrata que engloba nossa lógica de operar e ser. Para uns, o supremo país é o outro; para outros, o trabalho, a carreira, a religião, a arte, a família, o alinhamento político, o time da vida (não pode ser à toa que algumas torcidas se denominem nações), o fandom de uma série, filme, banda. Seja o que seja que nos define e dá berço, ou seja mesmo uma reunião de vários elementos em fórmula única, vamos sempre além do meramente nascido; moramos no sido.

Até porque, depois que o Brasil se rasgou em dois assim mais às escâncaras, não vejo como poderia ser possível habitá-lo todo, abraçá-lo na totalidade geográfica que antes (bem antes) parecia óbvia. O Brasil nunca foi um, é fato, porém nunca deixou de ser um tão ostensiva e fraturadamente, a tal ponto que nem no sentido denotativo mais pé-no-chânico, nem naquele sentido registrado com letra de forma na certidão, consigo dizê-lo meu país; nem o Brasil concreto e federativo é todo meu. O meu é essa coisa oswaldiana, jobiniana, rosiana, buarqueana, caetana, antropófaga e criativa, meio atropelada mas leal a si, à sua alegria, à sua matreirice de João Grilo; o outro – uma distopia histérica, descolada do óbvio mais básico, nazifascista de estampar suásticas no braço, piscina, janela e sequer corar –, desse outro não vim e para esse outro não vou em nenhuma circunstância, sob nenhuma hipótese. Não lhe conheço as coordenadas, não lhe falo (ou bufo, urro, grunho) a língua, não o compreendo nem sou parente de quem quer que viva nele: se algum deliriomínion me apontar na rua e alegar ser conterrâneo, vou alegar em resposta (ou no que eu CREIO ser uma resposta ao que eu ACHO que ele disse) que mal reconheço três fonemas do dialeto odiês do baixo-Paleolítico no qual ele parece ser fluente. Essa camada de nação cabeludamente embolorada, mutante no pior sentido, azeda ao paladar e propícia para intoxicações é um tumor acoplado à realidade, ponto – enquanto não for extirpada, não há perspectivas viáveis para seu hospedeiro.

Se como sapiens já somos exilados naturais que vamos buscando nacionalidades num infinito de nuvens, como brasileiros estamos naquele exílio brabo de não conseguir dormir simultaneamente com os dois olhos, de tal forma nosso habitat teórico nos agride. Não é somente questão de desejarmos nos sentir realizados, almofadados o bastante: é questão de não sermos deglutidos. Ter um país no qual nos acomodar e nos projetar "altas horas da noite" virou tão mais essencial quanto mais empurrado para o abstrato, para o virtual, única alternativa de construirmos nosso mapa sem pisar em terra hostil e minada. Somos então nativos da literatura, da esquerda, do grupo militante no Face; nossa cidade é Twitter, Amazon Prime, livro, Messenger, Netflix; residimos entre estrofes e documentários, crônicas e séries, romances e sites, encontrando aí também os nossos, tão igualmente exilados. Família, referências, afetos, tudo andamos pondo em suspenso, em flutuância, como uma penhora ou consignação: quando a chuva passar, quando o tempo abrir, voltamos para resgatar as joias todas que nos pertenciam – que nos pertencem –, nosso capital imaterial, nossa bagagem desassossegada de amores.

Enquanto não cessa o dilúvio, nossa pátria é a arca.

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