segunda-feira, 17 de maio de 2021

A galera do medo


Hoje é o Dia Internacional Contra a Homofobia, que se firmou nesta data porque, em 17 de maio de 1990, a Organização Mundial da Saúde retirou a homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças (CID). Ou seja: demorou até praticamente a última década do século XX para que pessoas livres e adultas deixassem (ao menos sob os olhos da medicina) de ser consideradas doentes por amar e/ou desejar outras pessoas livres e adultas. Sei bem que eram "outros tempos", que a internet não havia, que aparelhinhos eletrônicos para aproximar gentes e discursos estavam ainda em zigoto e, em consequência, era consideravelmente mais difícil universalizar o debate, espalhar compreensão e naturalidade sobre o assunto; as tradicionais famílias eram mui capazes de entrar em síncope se ouvissem expressões como "o marido do ator" durante o Jornal nacional, ou assistissem no Fantástico a uma entrevista com o marido do ator – desabituadíssimas que eram de ver homossexuais assumindo seus relacionamentos na vida real e sendo retratados como personagens não cômicos, histriônicos e estereotipados na ficção. A gente entende que era outro momento histórico; mas isso absolutamente NÃO QUER DIZER que a gente perdoe. Complicado demais perdoar a sociedade por sua inacreditável lentidão em naturalizar o afeto, em parar de classificá-lo como enfermidade, aberração ou mesmo crime, enquanto instituições como a guerra vêm frequentando os quadros de honra da História há uns bons milhares de anos, sem o menor pudor de dizer seu nome – e com o animado aval do povo de bem. Em que caceta de lógica uma demonstração de carinho vira coisa vergonhosa e o metralhar (explodir, torturar, mutilar) sumário de outros seres humanos aparece como ato de bravura é um negócio que nem em novos milhares de anos vou chegar a digerir. Jamé de jamé.

Não vou chegar a digerir, mas não vou afirmar que não suspeite freudianamente dos motivos desse desconcerto do mundo, como o nomeariam os barrocos; duvido que se duvide da enorme porção de libido desviada do rumo pertinente – alguém pensou nas fantasias lençólicas que os supostos tradicionalistas não confessam/não realizam? eeeeu não falei nada – e mal-empregadíssima numa violência substituta, vingativa, odiadora dos que são o que não se pode ser. E por são o que não se pode ser não quero dizer necessariamente gays, mas sim felizes. Gente infeliz com o que é, e provavelmente ainda mais infeliz com o que não está sendo, tem um potencial gigante para se tornar destrutiva, devoradora, tomada de uma fome de trator ressentido, que só deseja arrasar o quarteirão AND reduzi-lo a um plano cômodo e igual. Se fosse apenas questão de "não concordar" com relações homossexuais (embora seja esdrúxulo, em princípio, o conceito de "concordar com" ou "discordar de" algo que só diz respeito às pessoas que se relacionam, e que não foram a ninguém pedir autorização ou opinião), bastaria que o discordante não tivesse relações homossexuais; porém não, não é disso que se trata: trata-se de fazer inexistir a mera possibilidade que o ameaça, a mera sombra, o menor testemunho vivo de sua própria insegurança, sua insatisfação, sua incompletude. É preciso que a tentação seja arrancada do universo, que basicamente não haja alternativas – que nenhuma dúvida, nenhuma inquietação seja sequer permitida para bem de seu repouso noturno.

O homofóbico, assim (como o termo mesmo sugere), não é alguém que simplesmente não aprecia: é alguém que tem medo. Quando não se aprecia um tipo de filme ou livro, ora, dispensa-se a leitura, não se compra o ingresso, acabou-se; em sã consciência não se vai passando de livraria em livraria para destruir as obras de Jorge Amado porque não se gosta de Jorge Amado, nem se vai fazer plantão na frente do estúdio para agredir atores de Transformers e evitar a gravação de mais uma sequência da série que se acha uma porcaria. O estranho é uma criatura autodeclarar-se vidrada em, sei lá, romances de ficção científica e não ter OUTRA PREOCUPAÇÃO literária que não seja xingar os de Jorge Amado, ou então apresentar-se especialista em Godard e não escrever nenhuma crítica que não se dedique a desancar Transformers de todas as maneiras. Se algo não está dentro de sua esfera de gosto e compreensão, não lhe afeta a rotina, não o obriga a nada e não machuca ninguém, por que pitombas selvagens fazer justamente desse algo o centro de suas apreensões – A NÃO SER que se tenha alguma espécie de pavor de ser influenciado por esse adversário escolhido? Podem nem ser tendências homossexuais o que um homofóbico reprime (apesar de, em boa parte das vezes, serem); pode calhar de ser um terrível problema de autoestima, uma ferida hemorrágica de solidão, um rancor eterno de outros pais se mostrarem mais amorosos e evoluídos que os seus, uma raiva cheia de pus advinda do campo profissional, mas transbordante para todo e qualquer espaço em que haja uma galera segura e realizada. Seja qual seja a origem do ódio e do medo, entretanto, está lá presente e potente o medo: vai que aquela influência funesta acaba forçando sua vítima a demolir e retrabalhar todo um edifício de verdades capengas, a se encarar num espelho refletidor de frustrações, a se perceber suscetível e desencantada, vulnerável e líquida, dominada por emoções inaceitas entre outras vítimas tão perdidas e frustradas quanto ela?

Aos pretensos valentões e valentonas que têm tempo de se indignar com a vida sexual alheia, livre e adulta: se enxerguem, prezados – em todos os sentidos. Vejam o papel ridículo que fazem querendo reencontrar o que perderam, ou o que ainda não tiveram, espiando por fechaduras de quem nada lhes roubou. É em seu próprio domicílio psicológico que devem concentrar análises e esforços: está bem lá, na bagunça de seu coração, a chave que abre o discernimento necessário. E talvez um armário.

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