quarta-feira, 26 de maio de 2021

Prodígios


Acabo de ler uma citação superfofa de Schopenhauer (ou ao menos atribuída a Schopenhauer, cujo nome não costuma exatamente frequentar as mesmas frases em que brota o termo superfofa): "Toda criança é, de certo modo, um gênio. E todo gênio é, de certo modo, uma criança". Não vejo por onde discordar. Se a característica fundamental do gênio é um cérebro escancarado para possibilidades, curioso de causas e consequências, observador apaixonado de fatos e efeitos, nada mais parecido com a cabecinha dum pequeno cidadão que recém-começou a ser humano e que ainda não foi desdeslumbrado, pelo hábito, com relação a todas as coisas tão frescamente novas. E se a característica fundamental da criança é sua inocente predisposição de esponja, sua eterna constatação de que há sempre constatações espantosas apesar e além de suas certezas, nada mais semelhante à permeabilidade duma mente adulta que não se sacia, que nunca termina de descobrir caminhos dentro dos caminhos descobertos e de se atirar obcecadamente em cada trilha, estrada, escada, alçapão que vai se abrindo. É fato que a criança o faz por quase instinto e com quase inconsciência: nasceu programada para aprender e fadada a fascinar-se, já que não tem repertório para chamar de seu. Isso não tira o mérito individual de sua sede, porém não impede, tampouco, que esta se contextualize como regra até que o verniz social e o costume de viver a vão sufocando, atenuando, desencorajando; já a sede das mentes geniais sobrevive perfeitamente ao fechamento do portal infantil – em pelo menos algum dos nichos de conhecimento, a vaidade e o cansaço não chegam a suplantá-la.

O gênio é a criança que sobreviveu, não como ausência de informação e de técnica, e sim como abundância de espaço e de fome. Pode inclusive ter todos os rompantes, todas as teimosias e impaciências duma criança no perseguir obsessivo de seus gols particulares (e não passo pano para isso: se criaturas pirralhas mal-educadinhas precisam ser devidamente enquadradas, quanto mais gênios malcriados!, em torno dos quais continuam existindo outras respeitabilíssimas vidas adultas que não-me-re-cem ter de lidar com ataques marmanjos de prima-donnice). Pode igualmente, para bênção de seus convivas, ser dotado de um caráter docinho e comedido na aparência; mas o que não pode e não há de ser é comedido na essência de seus impulsos buscadores, insones de desejos e elucubrações específicas. Gênios serão qualquer coisa na condição de adultos, menos adultos sossegados – por dentro. Por dentro vão permanecer na imurchável, imarcescível hiperatividade dos neurônios, que engatinharão com a mesma fúria das pequenas mãos, pernas, olhos debutantes de mundo; vão enfiar os dedinhos em muitas tomadas acadêmicas e emocionais, vão contar a si mesmos again and again a história de suas obsessões, vão ser ocasionalmente temerários na tentativa de engolir o que não foi feito para ser engolido, ou digerir o que não se espera digerido. Vão eventualmente suspender a fome física de tão devorados pela outra, seja qual for a outra – química, filosofia, astronomia, literatura, música, física, pintura, cinema, medicina –, e viver volta e meia suspensos e possuídos por sua brincadeira de estimação, que não raro é a mesma responsável pelos ossos partidos e joelhos ralados.

Gênios são capazes de residir na hipnose de suas cismas, no atordoamento feliz de suas hipóteses, porém nem um pouco semelhantemente aos tontos que são escravos da piração alheia. Gênios se enamoram das porções da verdade que conseguem adivinhar, não criam compromisso com mentiras, não se consideram com tempo suficiente a ser desperdiçado no que não se reverte em beleza e em lógica. Gênios absorvem AND geram conteúdo em escalas industriais, nem que desejassem estariam em condições de sentar com a boca escancarada cheia de dentes, esperando a morte chegar; deprimem-se, claro, circulam completamente suscetíveis à série de males físicos e emocionais que acometem todos os outros (provavelmente, ainda mais suscetíveis), e no entanto nem por nada conseguem interromper a inquietude, conseguem se privar da inquietude que os caracteriza. Sendo insaciáveis de planeta – e de além-planeta –, fatalmente ou o devoram, ou são devorados por ele.

Querem ou precisam exaurir-se de brincar mentalmente até o limite do prazo, eis tudo. Gênios são acontecimentos sólidos feitos para solidificar desejos que, sem eles, desmanchariam no ar.

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