segunda-feira, 10 de maio de 2021

Um pulinho no futuro


Nossos brothers do North elegeram o 10 de maio como Trust Your Intuition Day (Dia de Confiar em Sua Intuição); como de praxe, não faço ideia do porquê – mas intuo ser desnecessário buscar fundas explicações para americanos e suas festas aleatórias, ainda mais para esta, toda trabalhada no que supostamente dispensa lógica ou finge dispensá-la. O importante é que ela está lá celebrada, ela, a rainha misteriosa de nossos impulsos tão estranhamente certeiros, a curiosa boca de palpites agudos que nem chegam a escapar lábios afora, apenas são mascados pela consciência e lhes deixam um saborzito de futuro. Foi bem assim que definiu a escritora Adriana Falcão, aliás: "Intuição é quando seu coração dá um pulinho no futuro e volta rápido".

Essa definição da escritora flerta com o que a princesa de todos os sortilégios tem de mais fascinante, que é o dom de ser científica sem parecê-lo. De fato a intuição é "um pulinho no futuro", mas não forçosamente do coração e sim do cérebro, sendo os dois por sinal a mesma coisa: esse mecanismo cinzento que nos comanda se espalha pelo ambiente com uma capacidade tão absurda, tão perceptiva, tão analítica, tão leitora que capta e arquiva bibliotecariamente as informações sem que tenhamos tempo de nos dar conta. Não notamos, mas aquele cidadão que nos arrepiou de repulsa à primeira vista não é que seja regido por um signo (ou lua ou sol ou ascendente ou horóscopo chinês) incompatível com os nossos receptores cósmicos; nossos receptores sensoriais é que milionésimo-segundamente escanearam o moço – e talvez tenham captado um olhar de cobiça para alguma novinha; talvez tenham visto ou adivinhado alguma inclinação de corpo dois flashes e meio mais grudenta, mais demorada no contato; talvez tenham microflagrado uma expressão facial que reagiu, equivocada, a uma piadinha grotesca; talvez tenham decodificado um resmungo que não seguiu por bom caminho. Não percebemos conscientemente a queda da ficha, mas aquele casal de cujo relacionamento duvidávamos deu-nos uma infinidade de subpistas para duvidar: os pés de um não apontavam para o outro, a voz ganhava um bemolzinho artificial nas trocas de bobagens íntimas, nenhum brilhito de admiração clandestina faiscava nas espiadas mútuas. Nunca soubemos por que não fizemos sinal para aquele táxi e fizemos para o seguinte, mas o nosso perdigueiro mental não perdoou uma ligeiríssima guinada do carro que dispensamos; foi rápida demais para a lembrança e muito suficiente para os botões de sobrevivência. Jamais fechamos o caso interno daquela amiga com quem fizemos o contrário, demos a ela a chance que nossos instintos recusavam com fúria; e por que recusavam? porque numa tarde de quinta-feira, sem desculpas de falta de grana, sem motivo específico, ela piscou marota e embolsou o troco que veio a mais no restaurante, fazendo ainda questão de se servir de dois copinhos do chá-cortesia à porta. Nossos minisherlocks sabiam antes, nós sabíamos que eles sabiam, e só a – esta sim – pouco sensata lorota social "que besteira, não vai acontecer nada" poderia nos empurrar tão eficientemente para a cornitude.

Porque é à negação da intuição que pertence a irracionalidade: nossos frios na espinha se baseiam em indícios, e somente em wishful thinkings é que se baseiam os não-vai-acontecer-nada nossos de cada dia. Não é mágica, é mero treinamento e disponibilidade dos canais sensíveis para medir o futuro a partir de dados do presente. DADOS, disse eu – não preconceitos; nada têm a ver com intuição as cismas que desenvolvemos por escolha, as obsessões que alimentamos em livre demanda. Um ciumento intui que vai ser/está sendo traído? um segurança de loja intui que o estabelecimento vai ser assaltado? praticamente nunca: o ciumento é um possessivo insuportável de baixa autoestima que ou se acaba ou acaba com o outro, ou ambos, numa relação abusiva; o segurança é um profissional que certamente não foi treinado por profilers do FBI, mas por outros agentes de uma lógica infernal que costuma orientar sua intuição pela escala Pantone de peles de clientes. Intuição é coisa bem outra, é examinarmos a cena mais rapidamente que nós, é fazermos uma leitura dinâmica das probabilidades, honesta, limpa, sem viés de confirmação, sem querermos que os fatos se curvem a uma ideia. É enxergarmos, num só frame, em fast-forward – esperando-se que tenhamos a decência de retornar ao frame com o fim de aperfeiçoar a narrativa.

Intuição existe para riscar o fósforo na enormidão escura, dizer "viu? agora é com você" e soprar o fósforo, nos deixando com aquele tanto de quase-nada revelado. Não é, por si só, garantia alguma de que se vá agarrar um trofeuzão na linha de chegada, porém (e não é nada pouco) costuma nos dar um spoiler lindão de onde a gente está pisando.

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