quinta-feira, 13 de maio de 2021

Chama com dois olhos andando

"Fire, full moon", de Paul Klee
"Fire, full moon", de Paul Klee

É maravilhosamente excessiva a energia brasileiro-literária de hoje, com os 162 anos de Raimundo Correia, os 140 de Lima Barreto e os 120 de Murilo Mendes – pra que esse desbunde letrístico todo concentrado num dia só, plantando recalque em tantas datas? (o engraçado é que, de duas em duas décadas quase redondinhas, nos aparecia um gênio escrevedor de 13 de maio, sem contar a participação especial & estrangeira de Alphonse Daudet, nascido 19 anos antes de nosso Raimundo. Encham de livros as gurias e guris desembarcados hoje no mundo, amigues, precisamos engordar essa tradição!). Na inviabilidade de honrar tantos nomes a contento, tomo aqui de empréstimo uns versos do caçula Murilo – na dúvida, agrade ao caçula –, que me desceram muito apropriados. Os primeiros, de seu poema "O homem, a luta e a eternidade": "Ó alma que não conhece todas as suas possibilidades,/ o mundo ainda é pequeno pra te encher". Os segundos, de seu "Mapa": "Almas desesperadas, eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes./ Detesto os que se tapeiam,/ os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens 'práticos'.../ [...]/ estou no ar,/ na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,/ no meu quarto modesto da praia de Botafogo,/ no pensamento dos homens que movem o mundo,/ nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando,/ sempre em transformação".

Fiquei particularmente simpática a essa chama com dois olhos andando, espécie de mula sem cabeça ao contrário que metaforiza bastante bem a figura do escritor: uma alma impreenchível pelo mundo pequeno demais, alma tão ardente e insatisfeita que circula não em carne mas em fogo vivo – a carne já lhe foi consumida pelo caldeirão das sinapses, pela enxurrante lava de ideias que transborda e transborda e poupa somente os dois olhos enormes, gulosos de assunto. O escritor é essa criatura pairante, englobadora, estranha, volta e meia interativa, porém sempre desencaixada, que não necessariamente incendeia o que toca e que é, ao contrário, necessariamente incendiada por tudo que vem a tocar. Às vezes se cala nas letras, e no entanto nunca, nem se passar anos sem verter uma só sílaba no papel, deixa de escrever muito, muito; sua alma se atormenta perenemente das possibilidades que não conhece num dia e que imagina no outro, que são ocultas num minuto e, no seguinte, escancaradas; um trecho, um ritmo, uma frase, um nome é capaz de assombrar-lhe o ouvido do pensamento até que seja digitado ou manuscrito, uma realidade paralela pode roubar-lhe o sono uma madrugada inteira, uma vida inteiramente nova pode invadir-lhe a atenção no meio do almoço. Não há fim de expediente para o escritor: ele é o expediente – e está sentadinho no escritório de si ainda que o flagrem na praia, de papo pro mar.

Escritores são os alquimistas de sua cidadezinha, os carregadores do mal secreto de sua cidadezona, os galopadores solitários de estranha cavalgada, os sabedores dum javanês todo ancestral e próprio, as involuntárias janelas do caos, os que montam o vento em pelo, os que moram na idade do serrote, os que esgotam o azul e seus enigmas, os que contemplam à noite o astro dos loucos e sol da demência, os que acham todo encerramento de texto um plenilúnio e um triste fim, os que (atrás dum tema, um título) escarafuncham feiras e mafuás.

Os que céleres voam, nem sempre (se) voltam, mas aos corações voltam mais.

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