sábado, 1 de maio de 2021

Filme de baixo orçamento


"Para o amor, um banco de praça já basta. Ou ficar na frente de um portão. Ou uma xícara de café. Amor mesmo é um filme de baixo orçamento."

São palavras fofas do querido Fabrício Carpinejar, em cujos textos se tropeça talvez com o maior número de citações conquistantes e derretedoras por centímetro quadrado. Sublinhe-se que o poeta não quis, com o dito, atribuir ao amor o tédio das coisas amareladas, paradas, desviçosas; quis apenas reforçar o fato factualíssimo de que o amor dispensa fogos porque dispensa artifícios, basta-se grandemente para enfeitar o momento e o local onde pisa. Estará ele feliz em Paris? sim (até porque quem não está feliz em Paris está equivocado), mas não mais pela cidade do que por si mesmo, e não mais pela declaração aos pés – ou no alto – da Torre Eiffel do que por um chocolate quente num café qualquer, uma tarde folheante na livraria de esquina, uma conversa com o crush no metrô em rush. Para o amor é (quase) indiferente, em termos de existir-se e garantir-se, andar na Champs-Élysées ou na Avenida Paulista ou no Mercadão de Madureira, uma vez que seu espaço é tão psicológico quanto seu tempo, é palco de teatro onde tudo pode se tornar, tudo pode ser; o amor não é filmado necessariamente em locação: faz-se locação.

OK que a paisagem da Toscana ajude a extravasar-se um coração sensível à vida, porém um programa de viagens tomado com vinho no sofá de casa não desengrandece em nada as falas do roteiro. Ninguém duvida de que uma noite gélida e coladinha sob a aurora boreal sirva de lenha à história conjunta, porém uma noite (não tão) gélida e coladinha sob a luminária que projeta borealices no teto do quarto esquenta com a mesma potência. Não se discute que uma montanha-russa da Disney possa unir o casal numa adrenalina partilhada, porém um filme no final da quarta-feira também pode, e pode desenrolar muito mais conversações inclusive. "Ah, mas não é a mesma coisa." Lógico, como experiência biográfica não é a mesma coisa, nem pretende; o amor é aquele que se acontece por dentro, para dentro, e filma o enredo com seu smartphone embutido para registro próprio. O amor não é o diretor que ajusta luz, câmera, som, lente, figurino em nome da narrativa que deseja produzir para fora e pela qual deseja exibir-se e fazer-se premiar – seu prêmio reside no enquanto-isso, no enredo itself, no durante, no chocolate dividido na mesa da cozinha, nos pratos lavados em dupla, no sossego livre e desglamouroso dos bastidores. É nos bastidores seu endereço e é com o parceiro de script que se dá a convivência, não com qualquer possível espectador.

Se se mostram indispensáveis o espectador, o cenário, a direção de arte e os efeitos especiais tãomente à vida amorosa quanto à vida que se fotografa para a Caras, e que se projeta para os amigos no Insta e no telão, tem boi na linha: uma boa, consistente história íntima se conta sem pirotecnia. Um bom e consistente pas de deux se dança sem maquiagem, sem tutu, sem paetê, sem elementos de cena, até sem música; ultramegaessenciais são só os dançarinos e seus movimentos, afinada coreografia e precisão na entrega. Amor é balé que baila em si, é história que se autonarra – tudo ao redor pode no máximo enriquecê-lo, nada fora dele é suficiente para construí-lo.

Nenhuma abundância do que não seja amor torna suas faltas menos precárias. Todo arrasa-quarteirão que se ergue na ausência do amor já nasce com sérias restrições orçamentárias.

Nenhum comentário: