sexta-feira, 21 de maio de 2021

Vaidades da raiva

O aniversariante de 333 anos do dia, Alexander Pope, é pop: teve lá sua importante menção no Código Da Vinci, por exemplo, e emplacou o título do multiamado filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças (trecho que equivale a um dos versos de "Eloisa to Abelard", conhecida obra do poeta); foi, também, o segundo autor mais citado no Oxford dictionary of quotations, perdendo unicamente para Shakespeare – que não chateia ninguém, convenhamos, por ser o Clóvis Bornay da literatura inglesa. Nada mau para quem teve a vida atravessada de agruras que não eram exatamente talhadas para fazê-lo rei da popularidade: filho de dois católicos numa época em que praticantes da religião estavam proibidos de ensinar, ir à universidade, votar e basicamente ter qualquer participação mais relevante na esfera pública, Pope aprendeu a ler com sua tia e apenas aos 10 ou 11 anos começou a receber alguma educação mais formal, que foi curtíssima (o poeta se instruiu praticamente sozinho, devorando autores como Horácio, Homero, Virgílio, Chaucer, Shakespeare – claro –, Dryden e afins); além disso, a partir dos 12 o jovem Alexander colecionou problemas de saúde, incluindo a doença de Pott – ou mal de Pott, ou tuberculose vertebral, ou espondilite tuberculosa –, infecção que lhe atacou a coluna, deformou-lhe o corpo, causou-lhe dificuldades respiratórias, febres altas, inflamação nos olhos, dor abdominal, deteve-lhe o crescimento em 1,37m e lhe rendeu uma corcunda pronunciada. Ah, sim, e dores de cabeça terríveis por toda a vida. Mesmo assim, ou exatamente por isso, o guri ficou um satírico espetacular, o que não o impediu de crer também num universo divina e perfeitamente ordenado, do qual só reclamamos por não o compreendermos. Nenhuma dúvida de que o rapaz tinha peito, tinha fé e tinha estilo.

Foi essa criatura interessantíssima de brilho eterno que um dia escreveu: "Sentir raiva é vingar-se das falhas dos outros em si próprio". Lindo e preciso, tal qual aquele "guardar ressentimento é como tomar veneno e esperar que o outro morra", frase que ora vejo atribuída a Einstein, ora a... hum... Shakespeare. Seja qual seja a paternidade da segunda máxima, a questão é que ela e a primeira vão guilherme-tellicamente no alvo; o que pitombas fazemos nós de nós, ao deglutir diariamente o ódio que preferiríamos enfiar na garganta daquele-um? Que raios de dever de casa masoquista pretendemos cumprir ao repassarmos rancorosamente cada tópico, ao revivermos cada item, ao ruminarmos cada parágrafo de coisas idas, ditas, feitas? Que grande avanço imaginamos empreender dando todo dia a cabeça de encontro às mesmas quinas, decicatrizando os mesmos arranhões, atiçando os mesmos machucados, salgando as mesmas dores? Não sei se há nisso alguma espécie de imolação (ou ao menos de amolação) ritual; não sei se temos raiva de nossa própria raiva, se por preguiça e estranha lógica desejamos resolver o assunto em home office mental, se algum mecanismo psiquiátrico nos impele a ser um tipo de bonequinho vodu de nossos desafetos; mas vocês vão concordar que SENTIDO, amigues, essa mania não faz – essa mania lokona de promovermos em nós a malhação do judas sem esperança de aleluias.

Obviamente a alternativa não é malhar nosso judas particular in loco, porém é necessário, é essencial não nos confundirmos com ele. Se alguém errou grave, errou rude, só nos cabe a parte bem minoritária da dor – aquela isenta de culpa, e por isso ligeira feito andorinha. Atirarmo-nos a um sofrimento descompensado dá uma pista de que não anda ali somente mágoa com Fulanito, andam também diversas vaidades possíveis: a presunção de que éramos bons demais para alguém SEQUER pensar em traição; a síndrome de onipotência frustrada, visto que todos os nossos esforços não foram capazes de evitar o erro e isso é i-na-cei-tá-vel; o gostinho em desabafar pública e superiormente a respeito dos horrores de Sicrano, como ele pôde, como ele foi capaz; o gosto em ostentar igualmente uma grande ferida para a qual estamos aceitando consolo, viu, galera?; a quase alegria salvo-conduta de estarmos livres de qualquer movimento em direção à criatura pecadora, ingrata, feia, boba, cara-de-mamão, pela qual já sofremos muito, muito. Apontar toda a hipótese envolvida nesse gozo da mágoa não significa, naturalmente, que não se tenha o pleno direito de acusar o golpe e contar com o sagrado desafogo da dor; significa apenas que a dor da falta alheia não nos pertence tamanhamente que devamos nos arvorar em maiores (ou menores) do que somos. Feitas todas as diligências que nos cabiam, em tese nos deveríamos vestir da paz missão-cumprídica de quem se sabe pequeno demais para palmatória do mundo – e grande demais para a covardia da indiferença.

Humanos nenhuns somos uma ilha. Mas tampouco somos homens e mulheres-maravilha.

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