quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Coisas tranquilas


Enquanto escrevo, ouço volta e meia o plim-plim da Sessão da Tarde nos arredores, abrindo e fechando blocos, abrindo e fechando blocos – seguido pelo turum que anuncia o closed caption disponível. Sim, é um reconforto; há tantas camadas morninhas nessas onomatopeias de vida, há uma consciência delicada de vizinhança sem haver qualquer invasão ou mesmo interação, há a nitidez de que o horário transcorre macio o bastante para que alguém sente diante de um filme, há a impressão de que em volta existe gente enrolada no cobertor e atracada num café com leite ou chocolate (a regra é clara: chuva contínua abre o protocolo de frrrio na Constituição carioca, diga o termômetro o que diga), há a sensação de que ainda é cedo, vê?, a história ainda não terminou, ainda não principiou o ciclo de novelas e jornais e novelas, temos plim-plim ainda, o lá-fora continua visível pela transparência da cortina, sossegue a urgência. O mundo assim está mergulhado naqueles abraços de inverno, embora estejamos recém-pós-primaveros (e muito francamente verânicos); está repousado e repousador, mansarrão como seu próprio silêncio só quebrado por faíscas de gente vivendo,  chuvica se precipitando, ave ao longe bem-te-vendo e te-vindo, algum carrinho de feira, algum estalo de geladeira ou móvel – o barulho estritamente preciso para que o silêncio, sem oprimir, se confirme.

Penso em coisas tranquilas, essas parentes da Sessão da Tarde plim-plindo, esses feelings de não-sei-quê de veludo que nos aconchega em tempos de nervoso, de estridência, de jingle-agitos. Chá com torradas; livro que com antecedência já sabemos gostado; meia (apesar de eu pouquissimamente usar meia, numa negação terminante de que aqui também faz frio); roupa já todinha pendurada no secador; roupa já todinha resgatada do secador e acomodada no armário; amaciante – no cheiro e no tato; perfume de entrar em livraria; perfume de entrar em padaria; perfume de entrar no Starbucks (beijo, Starbucks); telefilme no qual a mocinha ou mocinho enganado descobre em bom momento que é enganado e prepara sabiamente a captura do enganador; itens arrumados em ordem de arco-íris; cair de noite rosadito; deslizar dos comissários de bordo pelo avião com seu indefectível carrinho de refeições; explicações em inglês, quando não anasaladas nem ligeiras demais; recendência verde e terrosa de mato chovido.

E palavras cruzadas pós-banho, pós-dia, pós-tudo, enquanto corre programa no Investigação Discovery. E caixa de e-mail com nenhuma leitura pendurada. E hora do lanche obrigando a parada. E episódio novinho (para mim, naturalmente) de Cold case. Água na temperatura certa, para as atividades todas. Gente sardenta. Olhos cor de mel. Broazitas de fubá. Casas de chá. Compras já feitas. Obrigações já feitas. Sites de curiosidades malucas. Testes de sites de curiosidades malucas. Televisices SEM competição. Paisagens verdinhas de limo. Janelas carregando flor. Cabelos carregando flor. Nuvens botando o céu toooodo bordado de tufos. Candy colors. Bay windows com banquinho de leitura. Almofadas. Aquarelas. Acácias. Harpas. Glicínias. Caleidoscópios. Sonhos de creme. Silhuetas de árvore. Caixinhas de música. Vidraças com chuva. Rendas guipir. O que for possível e bordado de mais low-profilice, o que for mais impressionista e mais árcade, instruído para o não jogo, a ausência de petulância, cobrança e desafio.

O que nos salvar para a outra margem do rio.

Nenhum comentário: