segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Nada a fazer


Se é verdade que, como disse Victor Hugo, "não ter nada para fazer é a felicidade das crianças e a infelicidade dos anciãos", declaro-me contentemente promovida pelo mestre barbudão à categoria de criança. Não que em algum momento do dia, óbvio (para alguém não é óbvio?), eu deixe de estar fazendo alguma coisa; muito ao contraríssimo, tenho razões de ocupação em moto-perpétuo – escrever, lavar, pesquisar, guardar, pagar, caçar presente, caçar material, fazer exercício, resumir matéria, monitorar cada cantinho da casa em busca do que falta e deve ser incluído na próxima compra, logisticar os pagamentos e entregas, you name it. E isso SEM herdeiros trombando, entediando-se, pirando o home office, abrindo o supercílio e fabricando o caos pelos cômodos (mamães e papais, não sei como conseguis; em minha singela opinião o Nobel da Paz, da Matemática, da Economia e da cacetalhada completa já seria inteirinhamente vosso). De que maneira um ser humano nas CNTP visualiza um planeta em que não tem nada para fazer durante 24 horas é enigma que não me adentra a cabeça: impossível, filho, você que é negacionista ou avoado por demais, limpa os óculos e espia direitinho aí que tem. Mas o fato de eu SABER que tem e de FAZER (mui medianamente) o que tem significa olha-eu-feliz-de-que-tenha? Hell no.

Já falei milhões de vezes e recitaria outras tantas que sou de alma nascençamente passarinha, e nada, me parece, chegaria ever a convertê-la em praticante de workaholiquismo por propensão – no máximo por propulsão de algum desespero específico, e mesmo assim ao longo de raros minutos. Em reação de defesa natural, cresci com nenhum ar rebelde; malandragem, claro: a tentação de domar é, de costume, dirigida aos abertamente xucros, não aos arredios imanifestos, que não batem de frente a fim de acumular mais paz para operar nas sombras. Enfim, a hipocrisia? de jeito nenhum, economia apenas – de tempo e esforço. Hipócrita não fui nunca (desprezo o mais profundamente possível, aliás, embora talvez me divertisse praticando "hipocrisia do bem" entre canalhas, à moda de Schindler); tendente à estratégia de afastar os amofinadores para resolver as coisas mais a meu gosto, entretanto, desconfio que hei de ser sempre. Isso me põe na curiosa prateleira dos que não deixam de fazer absolutamente nada em troca da licença de não ter de fazer mais ainda – dos que cumprem o obrigatório para fugir ao obrigatório. E o fato de eu liquidar assim o obrigatório significa que zás, arranjei lá o troço de qualquer jeito e me livrei? Hell no way.

Por mais que tenha vontade selvagem e corcoveante, também não consigo ticar os itens taréficos sem um considerável desgaste qualitativo. Não sempre da mesma forma, e não com suficiente garantia de que a empreitada vai sair com uma cara que preste; mas é batata: se há que ser feito, em alguma medida vou sofrer, maior ou menormente; labutar tralalá da vida é que não vou. Uma arapuca. Me arrisco a afirmar que não se trata de perfeccionismo – quem dera! a amolação resultasse em algo próximo do perfeito –, não se trata de sentimento sério e polissílabo como res-pon-sa-bi-li-da-de, não se trata de senso do dever (essa secura que parece de general inventando pretexto pra guerra); haverá, quem sabe, algum componente de culpa, ainda que não uma culpa de tipo conceitual, místico ou quetais. Ou vá que seja isso tudo; porém, se for, digo que soube se fazer tão misturadinho a mim que não mais identifico nem destrincho. O que me vem no entendimento é se tratar de uma "culpa pessoal" – espécie de dor que dói fininha pela oportunidade negligenciada, desamada, nem que seja de tirar direito a mancha do texto ou da camisa, escolher o melhor verbo ou produto. E como meu sistema de gerenciamento de agonia elabora as cobranças? Deixando tudo maduramente para a última hora, quando já é restritiva em excesso a gaiola do tempo para que também se excedam os microcensores internos, os microanalistas de conteúdo. Yep, sou um pássaro que se esmaga para se libertar e não é por isso que fico mais livre.

Entendem? Eu muito menos; mas entendem, provavelmente, minha orgástica felicidade do não ter nada para fazer, premissa impraticável na realidade e compreensível em tese: inexiste o nada-para-fazer, e em compensação existe bem alto e claro o ninguém-mandando-fazer-nada. Morar numas férias sem prazo, sem prova, sem boleto, sem banca, eis a Mega-Sena acumulada da coisa. Era muito disso que eu queria ser rica – a chance douradinha de frequentar gaiolas só por catapulta de decisão.

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