quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Viagem ao seu


Quando você se achar muuuito crazy, lembre-se do médico britânico Phil Davies, de 55 anos, que declarou em entrevista ser dono de Marte – apenas. De acordo com o cidadão, as regras da ONU para reivindicar o território de um planeta rezam que os pleiteantes devem "comprovar a preparação do terreno desejado para uso sustentável" (uia! seriam as normas extensivas à Terra?), e Davies jura estar cumprindo bonitamente o protocolo: seu programa das noites é direcionar um laser poderosão para nosso vizinho de Sistema Solar, o que estaria tornando mais habitável a atmosfera marciana. Mas por que pitombas siderais a criatura cismou com a posse? Para impedir que EUA e Rússia, especialmente, cismem por seu lado com a construção de superbases militares ali no Vermelhinho. Errado não tá, admito. Enquanto não vem o apoio oficial que pediu (sim, ele pediu) ao governo britânico, a fim de poder solicitar formalmente a propriedade à ONU e à Corte de Direitos Humanos da União Europeia, o médico já meteu o monstro grileiro e latifundiário, e LOTEOU MARTE para distribuir nacos de 22 km² entre seus 151 mil simpatizantes de 195 países. É, amiguinhos. Pelo menos de tédio, na Terra, a gente definitivamente não morre.

Maluqueiras à parte (considerando que a coisa se mantenha em nível de loucura mansa e nas imediações do pitoresco), confessemos: são no mínimo instigantes a simplicidade do conceito e a envergadura da cara de pau. Ninguém está usando Marte, é meu, pronto. Quem impede? OK, a ONU impede, mas burocraticamente apenas; o fato de não ter a escritura na gaveta não parece deter em nada o sonho consciente de Phil Davies, que se mostra jogadíssimo no projeto com a seriedade de uma criança. Nenhuma ironia: não existe gente mais aferrada à posse de impossibilidades do que criança – até que as gentes crescem, se aferram à posse de possibilidades e perdem muito da poesia inerente às almas quixotescas. Algumas almas, porém, mesmo crescentes se escondem no recuo da bateria, montam acampamento no ponto cego, no apêndice, no desvio, no vinco formado entre o sóbrio e o insano. Querem, querem muito, querem de um jeito faca-só-lâmina, sem atrapalhar a realidade mas sem igualmente deixar-se atrapalhar por ela; entre o que pode haver e o que há, traçam uma ponte de mero detalhe. 

Em qual impossible dream você assentaria como rei e soberano? Eu provavelmente não iria me arvorar em proprietária desses espaços por aí além, para ter mais cansaço com aridez e poeira cósmica; já que a regra é pegar carona nessa cauda de cometa, declaro-me loteada no próprio sonho: viro dona da p**** toda em espaços aquém. Escolho imperar no subconsciente, escolho escolher os rumos (ao menos os rumos gerais) da ópera mental de cada noite, a fim de evitar terrorismos que me têm pesadelado tanto – assim como Phil Davies pretende brecar o criadouro de intenções nefastas em seus domínios. Quero também repartir entre os parças meu território onírico; nada do peso de obrigações esquisitas que o inconsciente cria para a parte acordada, nada de cenários desassossegantes, nada de medos sacados dalgum beco de infância, nada que bagunce a linha do tempo para mais ou para menos, nada de confusões, nada de angústias; o cérebro que lute para metabolizar o cotidiano sem nenhum método de escangalhá-lo. Aqui é nóis, tá tudo dominado, mano: tem que ser selado, registrado, carimbado, avaliado, rotulado se quiser sonhar. 

Para Marte a taxa pode passar a ser alta e requerer identidade; tanto faz-me. Me importa que, em viagens no autouniverso, seja preciso meu carimbo dando sim, sim, sim, sim – no reino de mim.

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