domingo, 6 de dezembro de 2020

A paz possível


A paz sem vencedor e sem vencidos. É o que Sophia de Mello Breyner Andresen pede, orante, em seu poema: a paz sem vencedor e sem vencidos. Sim, abraço-a e desejo-a tanto quanto, sabendo porém que seria a paz talvez imbuscável na Terra, limpa de lembranças, de suspeitas, de remorsos; a paz impossivelmente nua de história, a paz de um mundo resetado, em que nem a primeira disputa de opinião ou terreno tenha havido; a paz como projetada para uma humanidade em estado de conceito, uma humanidade botãozinhamente desligada de suas incompreensíveis pulsões. A paz prévia. A paz do Big Bang.

Como recuar as biografias, as batalhas, os enredos, as vivências com eficácia bastante para que vitórias e derrotas parem de estar no tempo? Como desexistir memórias, como desconceber no berço as vinganças, como destramar o que por milênios se constituiu sobre perdas e ganhos? De que maneira fazer essa paz mítica (sonhada por mim, por vós, pela voz da poeta) rebentar dos escombros como se não tivesse de arrebentá-los – como se NÃO HOUVESSE escombros? É tarde, é excessivamente tarde para a paz comme il faut, aquela de unicórnios saltitantes, ilibada e a-histórica: para onde olharmos, estaremos edificando sobre ruínas. Entre o que deveria ser e o que é, aconteceu o mundo.

Jamais teremos (ao menos nós não teremos), na superfície terrestre, a paz vestida de perfeição – somente a que surgir viável e cabível. Uma vez que não podemos retroceder a História, nada resta senão acolhê-la e compreendê-la em todos os trâmites; ignorá-la em nome de um desvario de harmonia universal é o que poderia haver de mais perverso. Sim, ocorreram e ainda ocorrem escravidão, nazismo, fascismo, imperialismo, capitalismo, racismo, apartheid, bullying, homofobia, tortura, ditadura e todas as semelhantes/derivadas desgraças; sangraram e ainda sangram (abertas as veias, sangrarão eternamente); e porque ainda sangram, ensoparão qualquer tentativa de bandeira branca que ignore sua pulsação e seu fluxo. É simplesmente inútil pretender que cada paz nascida a partir de agora não traga na seiva tudo que se lhe embrenhou pela raiz. É inútil se fazer incomodado porque âââin, bola pra frente, já foi, já deu, vamos deixar no passado toda a oceanidão de dor e reiniciar da tábula rasa. Não há tábula rasa: toda a narrativa que gerou o atual momento da espécie só abandonará a espécie sob influência do neuralizador dos Homens de Preto, e olhe lá, talvez nem. 

Irremediavelmente, precisaremos trabalhar com uma paz que abrace e inclua vencedores e vencidos; eles e seus descendentes. Precisaremos assumir o perrengue de conciliar um mundo irresetável. A paz possível vai ser, em igual medida, a mais complexa: terá de contar com perdões pedidos e dados, com reparações históricas urgentes, com cicatrizes sempre a um passo da hemorragia, com palavras sempre a um milímetro da borda, com acordos obtidos a muito custo e mantidos a custo inda maior, com dolorosas mas necessárias repressões a tudo quanto insistir em rasgar a paz sofridamente costurada. Unicórnios ainda não saltitarão nas ruas pelos próximos séculos – nem nós; somos da geração que continuará fazendo das tripas coração, baço, fígado, pulmões e pâncreas para que, muuuuuuuito talvezmente, alguma geração um dia saltite. Somos os limpadores de feridas, os trocadores de curativos, os administradores de remédios, os cuidadores diuturnos, os vigias, os zeladores:

É nossa EXTREMA obrigação ser incansáveis no tratamento sabendo, também, que somos muito anteriores à cura.

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