segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Holotúrias


Essas do título equivalem aos equinodermos chamados pepinos-do-mar. Pesquisei por causa dos versos ao mesmo tempo barítonos e aveludados de Wislawa Szymborska, que nos instrui em "Autotomia": "Em perigo, a holotúria se divide em duas:/ com uma metade se entrega à voracidade do mundo,/ com a outra foge.// Desintegra-se violentamente em ruína e salvação,/ em multa e prêmio, no que foi e no que será.// No meio do corpo da holotúria se abre um abismo/ com duas margens subitamente estranhas.// Em uma margem a morte, na outra a vida./ Aqui o desespero, lá o alento.// Se existe uma balança, os pratos não oscilam./ Se existe justiça, é esta.// Morrer só o necessário, sem exceder a medida./ Regenerar quanto for preciso da parte que restou". Há mais, há mais no poema (cuja translumbrante versão para o português foi feita, salvo engano, pela professora Regina Przybycien), e eu gulosamente amaria reproduzi-lo todo, caso não ficasse feio aqui um tal abuso de linhas não minhas; mas não o trago na íntegra também para poder parti-lo solenemente, como as holotúrias, nessa margem dramática – "Morrer só o necessário, sem exceder a medida./ Regenerar quanto for preciso da parte que restou". Tatuem. Eu tatuaria apaixonadamente, se.

Como estamos precisando para ontem, para anteontem, dum workshop de morte-só-necessária, dum ensino aprofundado de metade fuga, metade entrega à voracidade do mundo! Como carecemos, céus, dum manual de partição psicológica que simultaneamente nos deixe cascudos para o absurdo e resguardados na inocência! Não há sobrevivência sem adoecimento mental, me parece, se não formos capazes de ser holotúrios: reservarmos uma parte de nós para estar impávida colossa, recebendo os trancos e encarando as tretas deste mundo pandêmico, e outra parte para preservar finíssimos e transparentes os modos de ninfa. Uma face injetada com o soro do Capitão América, forçuda, inabalável, não atingível nem impressionável por bombas de efeito moral na lei ou na rua – máquina de seguir em frente, desatarraxada das próprias dores, focada e absoluta no que há a ser feito; a outra face nutrida a pó de fada, íntegra em sua faculdade de alar(-se) com pensamentos felizes, moldada de açúcar, sensibilidade e afeto – monstro de amar, chorar no cinema, chorar no noticiário, amimar filhote, distribuir no jardim pegadinhas de Coelho da Páscoa. Porção Rambo para um hemisfério da rotina, porção Amélie Poulain para o oposto, sem conflito e sem hipocrisia: enfim, a evolução.

Conseguem? deveríamos, mas é ingratíssimo atingirmos a composição psiquímica para chegar à arte do desdobramento. Dizem que as personalidades psicopatas alcançam, de boinha, um assombroso estado de dissociação, logrando ser o pagador de impostos insuspeito e o potencial estripador no mesmo pacote; isso, porém, só se realiza por não haver duas faces, e sim uma face e uma máscara – a crueldade legítima, gelada, indiferente, e a fachada social que é simplesmente casquinha. Não há divisão, há um acobertamento do que se sente; nada se dilacera de fato em termos emocionais, nenhuma lógica interna se rompe, e em vez de se bipartir holoturicamente a criatura, no máximo, troca de pele. Não vale. Nosso objetivo de aprendizes de holotúria, conforme falei, não é o de nos fazermos hipócritas, mas equilibrados e racionais o bastante para afrontar a luta sem sofrimento e existir fora dela sem amargura. Morrermos um bocadinho sim; só o estrito necessário, no entanto, para proceder ao corte de independência entre nossas partes igualmente reais e siamesas, a fim de que cada porção sobreviva de sua própria respiração e metabolismo, mesmo à custa de algumas cicatrizes cirúrgicas. Em seguida nos regenerarmos dessas mutilações precisas, esquecendo o mito platônico à medida que as metades se tornem operacionais em sua inteireza. 

Sermos, finalmente, criaturas divorciadas de nossa multidão particular – até que a morte nos una.

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