sábado, 5 de dezembro de 2020

Memórias do cárcere


Coisa que me comove demais de muito, além das histórias que vivem na sombra (de que ontem falei), são os esforços inenarráveis de várias dessas histórias para sobreviverem à sombra; a paixão indestrutível de não perecer, de permanecer, gritar-se, dar um chapéu nos carrascos, driblar todas as vigilâncias farpadas e chutar a gol. Descobri, por acaso e por exemplo, um trabalho deslumbrantíssimo de resgate de vozes que o horror não conseguiu emparedar: a pesquisa de mais de três décadas realizada pelo maestro italiano Francesco Lotoro, que incessantemente busca e executa composições feitas por prisioneiros de campos nazistas. Lotoro corre atrás das preciosidades em acervos de consulta pública, memoriais judaicos, comunidades ciganas, casas de sobreviventes do Holocausto e/ou de seus descendentes, num empenho artístico, humanitário e arqueológico que me faz o coração querer apertar o dele contra o peito. Uma das melodias e memórias tocantíssimas é a do tcheco Rudolf Karel – encerrado e torturado por dois anos na prisão Pankrác e, em seguida, enviado ao campo de concentração de Terezín –, que escrevia suas partituras em papel higiênico com o carvão que lhe davam para tratar disenteria. Karel chegou a produzir, nesse cúmulo de condições inóspitas, uma ópera de cinco atos (Three hairs of the wise old man) em 240 folhas de papel detalhadinhas, passadas discretamente a um guarda portador de humanidade. Sei nem o que diga. Só transbordam aplausos de pé para essa potência de vida que nunca se ajoelha.

Por mais que a cadela do terror, da crueldade, do fascismo esteja sempre no cio, felizmente não faltam provas de que a irrepresável vontade humana lhe responde quilometricamente teimosa, resistindo (ao menos por dentro, para compensar nossa estrutura física tão vulnerável) a todas as suas dentadas. Diz-se que Santa Cecília, depois de não morrer asfixiada por vapores ferventes a mando do prefeito de Roma, e de não ser decapitada com três machadadas no pescoço – OK, às vezes nossa estrutura física também não é tão vulnerável assim –, dava conselhos carinhosos a quem ia visitá-la em seu leito de pré-morte e entoava louvores, o que lhe valeu o título de padroeira dos músicos. Antonio Gramsci redigiu milhares de páginas de teoria política, filosofia e análise cultural enquanto estava nos cárceres fascistas, sendo que apenas após a Segunda Guerra (que Gramsci, morto em 1937, sequer "pegou") foi publicado todo esse colosso de pensamento. Anne Frank... bem, vocês sabem. Tomás Antônio Gonzaga cantou, dirceumente, liras e mais liras à sua Marília nos dois anos de aprisionamento na Ilha das Cobras. Victor Jara, poeta popular chileno assassinado pelo governo Pinochet, cantou literalmente, alto e forte – para animar seus companheiros –, enquanto os militares destroçavam suas mãos a coronhadas. Julio Fuchik, jornalista conterrâneo de Rudolf Karel e tão porreta quanto, na mesma prisão de Pankrác fez anotações em papeizinhos de maços de cigarro, devidamente contrabandeados para fora; em 1947, quatro anos após o enforcamento do autor, sua esposa Gusta (que foi encarcerada em galpão próximo ao de Julio, e para quem ele cantava a fim de avisar que ainda estava vivo) publicou os escritos no tocante Testamento sob a forca. Gente renhida, criativa, criadora, rija e topetuda mesmo na fraqueza; gente interminável. Forças de permanência que, ao contrário de seus algozes, deram jeitinho de simultaneamente ficar e fazer falta.

Obviamente não estou dizendo, com essa meia duzinha de exemplos entre os milhões disponíveis na História, que somente os vigorosos, resistentes e "produtivos" fazem falta, ou que é necessário passar assobiando pelo horror supremo da tortura para ter legitimadas sua existência e sua memória. Não; toda violência destrói uma experiência insubstituível de mundo, nenhuma dor precisa ter enredos de heroísmo para ser válida. Toda dor de injustiças e opressões é uma dor mártir. Mas é riquíssimo e essencial que haja, entre essas dores, as que berram testamentos, as que registram para a posteridade a extensão do absurdo, as que falam pelas que não puderam, as que chamam luz sobre eventos de que os culpados sempre desejam apagar o arquivo. É lindo e grandioso que algumas vozes mantenham o encargo de ecoar por suas irmãs de luta e timbre: embaixadoras de classe, representantes de turma, líderes sindicais de narrativas e aflições recorrentes na espécie. Quem permanece coletiviza. Potencializa. Torna-se relicário de lágrimas e risos que eletrocardiogramiza o coração duma época.

Milênios, milênios, milênios e (é para nos esperançar que estão aí essas vozes) a morte continua sem poder frear o que não tem freio. A vida – sempre! – encontra um meio.

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