sábado, 26 de dezembro de 2020

No ponto

Creio não haver autor tão apropriado quanto Kafka para citar neste aninho, digamos, diferenciado; vai então um de seus 109 Aforismos de Zürau, produzidos durante a temporada passada pelo escritor na aldeia do título: "A partir de um certo ponto, não há retorno. Esse é o ponto que é preciso alcançar".

Sim, Franzito (se me permite a intimidade), é esse o ponto – o equador feitinho mesmo para ser ultrapassado, quando a integridade é o hemisfério seguinte. À parte os fanatismos todos, que têm como diferencial negativo o fato de serem perfeitamente isentos de raciocínio, fomos concebidos para o radicalismo; o radicalismo pensante, pensado. O radicalismo de quem atravessou um longo tecer de observações e estudos e conceitos, emaranhou-se e desemaranhou-se sucessivamente no choque de ver nascer uma lucidez, até que concluiu todo o módulo básico de seu processo de humanização e (formado e coerente) declarou para si: não há volta. Em certas esferas não há possível relativização, possível negociação, a não ser que se picote a alma, se mutile uma verdade intrínseca, se degole uma obviedade, se construa uma horcrux das próprias cláusulas pétreas. Uma vez expandidas, consciências não se retraem sem decepar brutalmente partes muito carnudas de si – e quanto mais longe houverem ido, mais duvidoso se torna que essas perdas fundamentais não as hemorragiem até a morte. 

Ter a noção translímpida de tudo que a vacina representou e representa nos corredores da História, por exemplo. Depois de incorporada no sangue, nas vísceras essa apostilinha de Ciências da segunda série, uma criatura (com atestado de sanidade em dia) consegue falar/sentir/defender algo que NÃO seja a urgência de meter uma seringada anticorônica em cada braço do universo? Ou em termos de outras sobrevivências: alguém que já tenha lido com olhos honestos as estatísticas consegue, sem autotraição, sustentar qualquer argumento em favor do porte de armas – da mera EXISTÊNCIA de armas? consegue não se posicionar ao lado dos que sonham distribuir renda? consegue não pelejar pela manutenção e melhora do sistema público de saúde? consegue ser contra a taxação de milionários? contra a criminalização de racismo e homofobia? contra a escuta atenta e evitante no caso das potenciais vítimas de feminicídio? contra a matança das espécies todas?

Cruzado todo um oceano de leituras, lições, evidências, passa a não existir senão oceano; mesmo um improvável ensaio de retorno não esbarraria em nada senão oceano, oceano adiante, voltante, circundante – oceano inevitável, oceano interminável, oceano compulsório e absoluto. Saber, estar ciente, é um mar ciumento que não deixa em nós coisa alguma desencharcada, coisa alguma que não passe a ser a mesma certeza que a contorna. Não apenas defendemos a igualdade, SOMOS a igualdade; SOMOS o antipreconceito; SOMOS o fim de todas as manifestações do escravismo. Para além do point of no return de uma nossa convicção intelectual e ética, resguardá-la é resguardar-nos, protegê-la é proteger-nos mesmo à custa de nossa desproteção.

Vale a pena? – é pergunta que não há, por não haver pena: nem autopiedade nem condenação nem dor. O que há é o abraço entranhado de um fiat, a incondicionalidade da natureza que se cumpre. Ser é estar sendo até que não se diferencie de seu cúmulo.

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