domingo, 20 de dezembro de 2020

A bondade endurecida


Cá em nosso Brasilzito, 20 de dezembro foi eleito Dia da Bondade. Confesso ter tido sempre uma implicância chatinha com a palavra, por achá-la cafona – a PA-LA-VRA, bem entendido, obviamente não a bondade em si; ao contrário: considero todos os sentires e fazeres sórdidos de uma cafonice imensurável, porque fáceis, previsíveis e rasteiros como ornamentação de péssimo gosto. E justamente essa turma imersa na bregalhada emocional costuma cobrir seus maus ímpetos com paninhos (quentes) verbais, entre os quais a clássica bondade que habitualmente se usa em tom condescendente, como sinônimo de Papai Noel way of life – a coisa de presentear ou mandar cesta básica em datas festivas, de dar a ajuda superficial e episódica que figura bem nos murais do country clube. Toda ajuda é claramente bem-vinda, ainda que apimentada de promoção pessoal; resumir a isso a bondade, entretanto, é indecente e parvo. Bondade legítima não fica apegadinha a selfie nem escolhe o que não vai causar polêmica à mesa do chá. Bondade raiz não diz "no meu tempo" nem separa os carecidos entre auxiliáveis e se-danáveis. Bondade não julga, bondade incomoda, bondade protesta, bondade peita governo, bondade não é suspirante nem batedora profissional de continência nem palerma. Bondade nem sempre é boazinha.

Neruda resumiu magnificamente ao afirmar que "os bons serão os que mais depressa [...] souberem dizer a sua bondade endurecida contra todo aquele que a merecer. Bondade que se move, não com alguém, mas contra alguém. Bondade que não agride nem lambe, mas que desentranha e luta porque é a própria arma da vida. E, assim, só se chamarão bons os de coração reto, os não flexíveis, os insubmissos, os melhores. Reivindicarão a bondade apodrecida por tanta baixeza, serão o braço da vida e os ricos de espírito". Touché: bondade endurecida contra todo aquele que a merecer, bondade que desentranha e luta. Não a menina comportadinha que acata porque é regra acatar, e não sabe o que está acatando, mas a que às vezes ataca – mete o dedo na cara dos injustos, faz um escarcéu contra preconceituosos, vira onça para dar guarida a indefesos. Não a mocinha de família que obedece sem reflexão, mesmo à custa da consciência e da lógica, mas a que dá sacralidade ao que é íntegro muito acimamente do que é lícito. Ora, leis de Estado e governo já abraçaram a escravidão, o nazismo, o trabalho infantil, o apartheid; situar-se rigorosamente dentro de leis escritas por e para poderosos não atesta nenhuma bondade, nenhuma correção portanto. Jesus, Tiradentes, Joana d'Arc, Gandhi, Luther King, Mandela não foram exatamente gente que priorizasse o encaixismo sobre deveres e convicções – e se hoje são todos símbolos de amor, retidão e coragem, o mesmo não pensaram decerto os seus contemporâneos, que os presentearam com prisão e/ou morte não apesar de, e sim por causa de suas reputações. 

Ser considerado inconveniente pelos maus é absoluta obrigação dos bons. Ser registrado como pária, agitador e rebelde em dossiês confeccionadinhos por criaturas que moem cérebros com fake news, que celebram armas e queimadas, torturas e censuras, chacinas e desvacinas e cloroquinas, homofobia, racismo, achismo, machismo, assédio, assassinato, agressão à cultura e à ciência, leitura criminosa da religião como um fanatismo de insanos – ser incômodo para (e até odiado por) esses seres das trevas é o que se espera de qualquer funcionário da luz. Embora não violenta, não agressiva, a bondade é necessariamente insubmissa e inflexível, conforme bem o assinalou Neruda; mas insubmissa e inflexível ANTE OS QUE ABUSAM DO PODER. Com os mansos a bondade é mansíssima, com os humildes é ajoelhante, com os pequenitos é sim flexível e macia e moldável infindavelmente, coberta de chocolate granulado e açúcar. Unicórnio na lida com os esmagados, velociraptor na jugular de esmagantes; Sininho com oprimidos, Jason com opressores; Baby Yoda para explorados, Kraken para vampiros. Bondade original de fábrica destina, ao topo da pirâmide, no máximo civilidade e cortesia – jamais leniência. Bondade não sabe falar baixo quando é por ela que as evidências gritam. 

Quem tem ouvidos para ouvir, que a ouça. Quem não tem que se prepare para as resultâncias: vai ter.

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