quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Órfãos da Terra


24 de dezembro, no Brasil, foi declarado Dia do Órfão – e considero escolha de acertadinha sensibilidade: é provavelmente o dia que mais amacia toda a gente para o que é mais sozinho, mais vulnerável. Há na data, claro, o componente paralelo, o do preparativismo estou-ocupado-me-deixa-não-posso-ver-isso-agora, sempre atabalhoado de compras e providências e ceias; mas paira indiscutivelmente um sopro de enternecimento e colo no mundo. Está-se, em geral, suscetível a ver, competente para pressentir – em parte pelo Natal mesmo, em parte por uma talvez subdivisão emocional entre empatia, exaustão e culpa, variando de proporção conforme a vivência do sentidor. Existem os de natureza feita de amor perene (tenho a honra de conhecer alguns), existem os que ficam tenros para dores alheias à força de serem moídos pelas próprias, existem os indiferentes por hábito e ofício que são cooptados pela época e, meio avexadamente, passam um tempo se importando. Seja o que seja; a data é boa, propícia, capaz de flagrar poucos fora de uma (pelo menos aparente) postura de acolhimento à orfandade no sentido mais vasto.

Porque orfandade vai muito além de sua representação mais direta – e obviamente mais relevante: a da criança tutelada pelo Estado (ou por ninguém) após a perda dos pais. É a imagem mais icônica do desamparo, porém não a única; dão-se orfandades várias, várias, em todas as idades, de gente que desconhece o básico da infraestrutura humana, o mínimo de apoio, zelo, desvelo. Gente born into emptiness, "nascida para o vazio", como resumem os versos de "Learn to be lonely" (canção de Lloyd Webber feita para os créditos finais dO Fantasma da Ópera); gente naturalmente não destinada ao vácuo emocional, mas de toda forma recebida por ele. Há órfãos de pais que, embora vivos, são de sua parte também órfãos morais, destituídos de tradição afetiva, de percepção humanística pré-requisitada para a criação de pessoas. Há órfãos de pais abusadores, menores de idade presos entre a perversidade de um elemento do casal e a cegueira – não raramente voluntária – do outro. Há órfãos de pais que concordam em prostituir seus filhos. Há órfãos de pais áridos, desérticos, sádicos, narcisistas, autocentrados, inseguros demais para qualquer vínculo, egoístas demais para qualquer gratuidade. Há órfãos de pais que não morreram mas mataram: mataram cedo, mataram logo, cortaram rente o direito de seus pequenos humanos propriamente amanhecerem, inaugurarem-se no planeta com a sagrada fé na vida e na espécie. Órfãos que tiveram sua ideia de família assassinada pela "família" mesma.

Há órfãos também adultos, e não apenas os que viram morrer seus ascendentes imediatos num ciclo natural, mas notadamente os que se encontram à deriva de assistência e afeto. Pessoas em situação de rua não buscadas por parentes de coração ou sangue, velhinhos abandonados pela filharada em clínicas e asilos, doentes de vício cujas necessidades já superam largamente as possibilidades da família exausta, mulheres encarceradas e gaslighteadas em relacionamentos abusivos, orfanadas até de si próprias. Cidadãos traficados, escravizados, aprisionados em enredos que são o puro milk-shake do inferno (viram o caso estarrecedor da Madalena, divulgado esta semana?). Enfermos mentais de que a maior parte da parentada já desistiu. Familiares que não desistiram, porém estão absolutamente isolados e desamparados no ato de cuidar desses enfermos. Refugiados que tiveram despedaçados os meios de contato com os seus e se veem atônitos em cultura estrangeira. Tantos, tantos, tantos carentes duma cota essencial de chão, de raiz, de referência, de laço, de cura, de perspectiva, de espelhamento; humanos que orbitam sem eixo humano, astros em desastrosa colisão com o nada para o qual não fomos feitos.

Como revela o Menino que nasce quase hoje, fomos feitos para tudo – para o amor, que é muito exatamente tudo. De níver, o Menino nos quer presentes para os desfuturados, lembrança para os esquecidos, doação para os doídos, cartão para os descartados, regalo para os relegados. O Menino nos quer para quem não tem.

(Em toda esquina é Belém.)

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