quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Intraduções


"A distância que separa os sentimentos das palavras", vagueia Clarice em Perto do coração selvagem, "já pensei nisso. E o mais curioso é que no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é, seguramente, o que eu sinto mas o que eu digo."

Sim, sim, sim. Sentir, assim purinho, é imaterial demais, etéreo demais para sozinhamente nos mover a algo; é um vento, uma brisa, uma pulsação, um susto, um estado, amorfo e sem imediata concretude. Qual é o moinho que concretiza o sentir soprado? Dizer. Dizer falando ou escrevendo, mas verbalizar em regra; pôr em papel ou tela ou onda sonora o que existe frouxo e desorganizado na bagunça do coração. Em contrapartida, não se pode pretender que nada fique lost in translation, que não fique para trás algum imposto ou pedágio do sentimento original após ser esculpido em fonema e letra. E talvez ainda bem. A arte literária seria quase certamente menos pródiga, menos fecunda, se o artista atingisse o orgasmo expressivo a qualquer texto – se bastasse querer manifestar redondinho o que lhe atormenta as veias para conseguir prontamente manifestá-lo, de uma tacada, sem insatisfações, sem arestas. Só que não, o escritor é bicho engasgado que dificilmente se realiza: nunca era exatamente desse jeito, nunca era assim. Desta vez veio assim, porém não era assim. E nessa aflição insaciada brotam textos e textos e textos que, para nós outros, parecem sempre que desde o Big Bang nasceram para ser direitinho assim, sem tirar nem flor.

Também as declarações: abençoada a impossibilidade de os apaixonados se significarem inteiros num dito só, de uma vez para todos os tempos. A felicidade de boa parte do planeta advém desse impossível, que força os amores a buscar renovações e criatividades, novidades do mercado em termos de explosão emotiva, vaivéns angustiados de metáforas, sinestesias, hipérboles e outras figuritas para todos os gostos, em tentativa sísifa de ilustrarem a própria grandeza sem parecerem uns pamonhas. E é o que há de mais adorável no universo, o amor gaguejante, abafado, apamonhado pela árdua procura do não apamonhamento; se fosse desde o início pleno e bem-sucedido na palavra, em vez de um condenado à insuficiência de seus esforços, fatalmente se faria mais vaidoso que zeloso e, muito em breve, menos real. Ser perfeitamente incompetente para se externar e continuar tentando – eis o que leva o amor às bodas de tudo. 

Como bem diz a narração clariceana, é o falado que empurra o (com trocadilho) sentido; é a azáfama de retratar o abstrato que nos põe apegados àquilo que, a duras penas, alcançamos de concreto. Embora nossa limitação tradutora acabe nos afastando da pseudoperfeição do sentimento motor, aproxima-nos do que ele tem de honesto, de persistente, de viável; obriga-nos a transformar a fé em obra, o desejo em trabalho, o privado em coletivo. Somos apenas se fazemos. Somos conforme confeccionamos. 

É de boas construções que o céu está cheio.

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