quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Não viveremos em vão


Algumas janelinhas do calendário parecem abertas para o sol profundo. Hoje, por exemplo, 10 de dezembro, o midichlorianômetro explode de genialidade feminina: além dos cem anitos de Clarice Lispector, temos os 205 de Ada Lovelace (filha de Byron e primeira programadora da história), os 190 da poeta americana Emily Dickinson e os 58 de Cássia Eller. Música, poesia, romance, algoritmo – é energia para abalar todos os bangus da Força.

E, no entanto, é preciso um tão simplesinho acervo de força para abalar o mundo. Felizmente para nós, não é crucial que um relâmpago de perícia nos atravesse – como atravessou essas quatro potências da natureza – se desejarmos fazer um check-in bem-sucedido em nosso cantinho do universo. São os próprios versos da quase bicentenária Dickinson que invoco em meu testemunho (na linda tradução de Aíla de Oliveira Gomes): "Não viverei em vão, se puder/ Salvar de partir-se um coração,/ Se eu puder aliviar uma vida/ Sofrida, ou abrandar uma dor,/ Ou ajudar exangue passarinho/ A subir de novo ao ninho –/ Não viverei em vão".

Não viveremos em vão, se de nosso paradeiro enxergarmos com nitidez particular e geral as feridas que moram nos outros paradeiros, e se não sossegarmos no sofá enquanto não matarmos todas as fomes possíveis em legítima defesa da humanidade. Não viveremos em vão, se na esquina de uma quinta-feira pudermos fazer a doação da palavra certa. Não viveremos em vão, se ao menos uma vez houvermos engrossado a manifestação por justiças urgentes. Não viveremos em vão, se de repente um nosso elogio empurrar para as letras uma jovem Clarice, uma pequena Emily, que crescem talvez onde nunca se imaginariam vistas; se um nosso entusiasmo regar impulsos científicos numa Adazinha que nunca se imaginaria estimulada; se um nosso aplauso ou abraço acolher uma Cássia que nunca se imaginaria compreendida. Se um copo d'água, um tupperware recheadinho, uma bobagem de meme, uma dica de série, uma foto de cerejeira, um vídeo de criatura bochechuda saírem de nossos domínios diretamente para fazer um dia.

Não viveremos em vão, se abrirmos os olhos a uma vítima encegueirada de relacionamento abusivo; se ajudarmos a viralizar uma vaquinha salvadora; se reencaminharmos para o expediente, em segurança, uma abelha que nos esteja dando cabeçadas na vidraça; se fizermos campanha pela vacina; se naturalmente pedirmos e cedermos perdões; se formos (para o que quer que seja de essencial e justo) voluntários; se nos doer até as lágrimas o disparate social; se emprestarmos a alguém a alegria inédita de ser indispensável; se cobrirmos o choro de cafuné; se cozinharmos colorido; se doarmos sangue. Não é sine qua non que tenhamos nossa hora da estrela, revolucionemos a informática, realinhemos a órbita dos planetas; se por efeito borboleta formos uma gota encorpando a cascata, não viveremos em vão. Parte imensa da grandeza do mundo se fez de depositadores de tijolinho como nós, funcionários da sombra, do silêncio, da surdina.

Orgulho, trabalhadores irmãos meus: montamos a mesma felicidade pela entrada clandestina.

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