quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Tem gente pedindo pouso


16 de dezembro marca o início de um festejo novenário e lindinho, típico do México e outras áreas das Américas que tiveram colonização/influência hispânica: Las Posadas. Desta data até a véspera do Natal, desenrolam-se as encenações e orações – nove dias que relembram os nove meses da gravidez de Maria, assim como os perrengues que ela e José passaram durante a viagem de recenseamento, em busca de lugarzinho seguro onde Jesus pudesse nascer. Mais ou menos assim o costume, com variantes regionais: a cada noite, um determinado endereço é escalado para receber a Posada; crianças e adultos da vizinhança são os peregrinos que vão de casa em casa, entoando uma cantiga tradicional a respeito da saga da Sagrada Família procurante dum pouso, e de casa em casa sua entrada é recusada como na história bíblica. Até que os caminheiros chegam ao local combinado da Posada, Maria e José são enfim "reconhecidos" e todos ganham acolhimento para as devidas celebrações. Uma forma ritual e fofa de recordar: tem sempre gente em volta pedindo abrigo, pedindo ensejo, pedindo chance, e mesmo que invisivelmente pode estar trazendo, dentro, um tamanhão de luz que nem se atina.

Tem gente pedindo pouso, ô! como. Gente coberta dum talento que não sabe pra onde abrir asa, gente insuspeitamente fundamental para o mundo (a rigor todos são, que a natureza é precisa e ingastadeira), porém desperdiçada, desbussolada, desobservada, não raramente desavisada até do mais básico de suas potências, até da obviedade de guardar-se em benefício de futuros possíveis. Gente desabituada a considerar-se por não ter sido considerada nunca, e portanto desabrigada e desobrigada inclusive de si, compreensivelmente incompetente para se fornecer o amor que motiva e autopreserva.

Tem gente pedindo pouso: gentezinha que habita ainda uma infância cheia de alvíssaras, confiada (com justiça) em que lhe ponham a inocência num cofre; ou gentezinha já traspassada dalguma dor crua, esperançosa num abrir de porta que lhe desestreite as margens. Tem gente miúda e graúda pedindo berço, pedindo braço, pedindo colo, pedindo tempo – o tempo só bastante para a ajuda no atravessamento duma estrada ou duma época, para o amparo na injeção ou na dívida, para o apoio na água, no gás ou na matemática. Gente por aí espalhada, à penca, à beça, que não tem e queria bocadinhamente ter um minuto de lar, uma brecha de pertencimento. Um lance. Uma alternativa.

Tem gente demais da conta pedindo o mínimo – de sorte, de norte, de suporte, de saída, de guarida, de ação, de proteção, de crença, de presença; gente desvista pedindo olho, gente refugiada pedindo refúgio, gente carecendo de menos estresse e mais GPS, de mais dança e menos cobrança; gente buscando asilo de amigo, peito de irmão, mão de parceiro, ternura de amado; gente precisando não ter o aniversário esquecido, não ter as lembranças escoadas, não perder a constância do salário, não trocar por silêncio a gargalhada dos netos, não deixar para trás quem é, não abandonar o gosto de ser. Muita gente pedindo pausa. Muita gente pedindo pouso.

Tanta gente pedindo pouco.

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