quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Para veres com beleza


Espiem só que boniteza aguda o dito de Henri Frédéric Amiel, escritor e filósofo suíço: "Vê duas vezes para veres com exatidão; vê apenas uma vez para veres com beleza".

Os lugares de infância, por exemplo. Se não crescemos androides, e sim pessoinhas de pulmões e veias, nossa memória de formato, detalhe, cor e (principalmente) tamanho dos lugares de infância não tem a mais remota precisão; é tudo grande demais, misterioso demais e lindo. No quintal de tantos brinquedumes não se encaixavam de verdade essas correrias todas, o lá-fora não era assim tão exatamente poético, tão fresco, tão arborizado; por dentro, no entanto – mesmo na visão que pode não ter ocorrido uma só vez no calendário, mas que se deu numa só época, num cantinho único da biografia –, está tudo embrulhado nas percepções sagradas do eu-pequeno, que cabia muito fartamente naquele espaço prodigioso e sobrava um quilômetro. Nosso filtro dos Natais, aniversários e Dias das Crianças passados transforma toda a lembrança daquelas áreas num monumento íntimo de absurdos? Mexe não, deixa assim. Por muita felicidade minha, me é impossível revisitar a casa que me cresceu até os oito anos: melhor que já não exista fisicamente do que ser mentalmente demolida a um relance de olhos adultos. Melhor que se mantenha de pé em flashes, bela e incerta, do que ser abalada pela presença de um corpo agora incabível em seus limites. Dorme aí sossegada, casinha antiga só acessível nas fotos – que não te violentam com um esquadrinhamento físico, que te levam somente nossos pensamentos sem matéria, que te preservam para sempre de qualquer tentativa de exatidão. 

Acontece também com filmes, livros, novelas: nenhuma revisita pisa o mesmo piso. Somos sempre outros, até bem outros, quando voltamos às velhas cenas – mas com a diferença fundamental de o caso aqui ser de arte, entendimento, cognição, não meramente de recordação e saudade. Ao contrário dos troncos e membros que, crescidos, espremem em excesso a memória feliz dos espaços, espera-se que a cabeça (ou seu conteúdo) mergulhe muito mais nas obras quanto mais esteja ampliada: há mais bagagem para a recepção, mais caminho por trás dos olhos, mais malícia para os diálogos, mais sensibilidade para as estéticas, mais gabarito para ligar os pontos. E mesmo assim – mesmo concordando que a leitura das segundas vezes costuma ter uma integridade que escapa ao ímpeto das primeiras –, devo admitir o gosto um pouco amarguinho que fica quando a maior experiência diminui o alumbramento, diminui o susto ingênuo inicial, aquele que eventualmente guardamos como se guarda o quintal onde se cresce. Posso testemunhá-lo com relação a um meu livro muito amado, As pupilas do senhor reitor, que conheci com a inocência literária dos quatorze anos e para o qual voltei com a estrada dos quase quarenta. Ainda maravilhoso? certamente; porém já sem o encanto da inauguração no português lusitano, num mundo de aldeiazinha até então ignorado, numa construção de personagens bem diversa àquela altura. Os primórdios de nossas paixões artísticas, nossos choques originais, nossa limpeza de crítica e de olhar, nossas virgindades de vida e conhecimento, nossos acatamentos de consumidor obediente não serão reproduzidos – e NÃO DEVEM sê-lo. Não devem sê-lo porque nós não seremos reproduzidos em qualquer outra idade tampouco. E ainda assim frustra. Ainda assim dói.

Dói o peso da exatidão porque minimiza o da beleza fresca. Doem os encontros seguintes porque roubam potência ao encontro inaugural. Mas voilà, eis a etiquetinha de preço grudada no privilégio de adultecer: deixar de enfeitiçar-se para mansamente amar, curar-se do que é maníaco com a medicina do raciocínio, que por trás da frieza falsa sorri cheio de compaixão, ternura e covinhas. Bendita seja, anyway, cada uma das inevitáveis primeiras vezes de nossos olhos já maturados; felizmente existirão sempre, para (ao menos por momentos) nos capturar numa tela de luz e susto.

Toda porçãozinha de coração que não queimou permanece ainda fértil – e tão mais florível quanto maior for o terreno adubado pela riqueza orgânica da velha impressão.

Nenhum comentário: