sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Valsa das flores

Estreou num 18 de dezembro de 1892, no Teatro Mariinski de São Petersburgo, a obra que me fez estrear também como pequena frequentadora do Theatro Municipal do Rio: O Quebra-Nozes, essa doçura bailante e natalina composta por Tchaikovski sobre um conto infantil de E. T. A. Hoffmann relido por Alexandre Dumaszão. Dificilmente vai haver, na história da humanidade, outro balé com tantos hits por compasso quadrado – entre os quais se destaca (na minha favoritice, ao menos) a irretocável, a fabulosa "Valsa das flores". Eu já a tinha no ouvido desde Fantasia, porém vê-la se encarnando no palco é coisa que nem uma Disney de cinema consegue superar; minha já então romântica e oitocentista almita de onze anos deveu muito de seu amor por valsas à idealização do velho Tchai e de seus parças artísticos, ainda que indiretos. Quem ama valsas já teve o coração inevitavelmente dançado por Tchaikovski e por Strauss: fatão. Um desnaturado capaz de ignorar as flores de um e o rio do outro não é digno nem do um-dois-três que a pontinha dos dedos batuca.

Espero que the good old Tchai me perdoe a ousadia, mas agora de pronto só me ocorre homenagear a "Valsa das flores" ensaiando miudinhamente outra valsa das flores: assim compassada, botando na cesta braçadas, braçadas de rosa e quetais; rodante, rodante, maluca e liberta, coberta de gérberas, íris, gardênias, orquídeas, jacintos, moreias, ciclames, centáureas, ipês, manacás. Ali pingo cravos, ali astromélias, no canto agapantos, na esquina boninas, cravinas, camélias, bromélias, lobélias, gloxínias e zínias, lavanda, alamanda – e aos pés da varanda begônias, peônias (talvez helicônias); torênias tocando seus altos trompetes, os ruivos tagetes chorando defuntos; e juntos, bem juntos, amores-perfeitos, coroas-de-cristo, jasmins-dos-açores. De todas as cores, de todos os jeitos, salão e sujeitos que estreitam cinturas, que arriscam tonturas, se vestem de flores.

Alguns oleandros de olhares malandros, algumas acácias de largas audácias, hibiscos ariscos, verônicas tontas, gailárdias gaiatas e nêvedas ledas: volteiam, volteiam em pares, sem pausa, deslizam no piso. Se adora o narciso, se apruma a pervinca, a prímula brinca nos braços do noivo – e o goivo, enlutado de amor d'açucena, sem pena se aturde no agito noturno. O amigo viburno se achega à nemésia (e à frésia, e à lilás, e à lantana, e à mimosa); anis, tuberosa, campânula, lótus se exibem às fotos, as sálvias às selfies, e só madressilvas espiam remotos indícios d'além do jardim: a noite tem fim. 

Mas não, não assim.

As clívias, as clúsias (também clematites) não topam limites e giram, às dúzias. Junquilho e giesta se agarram à festa – rodantes, rodantes, no longo estribilho: é cedo, é tão cedo, inda a noite é criança; há tempo pra dança, tão mais! há tão mais! Alpínia, edelvais, rododendro, petúnia, nigela, agerato mantêm a esperança na dança perene; porém já é fato: é dia, amanhece, senhores, senhoras. Acorda, onze-horas; faz sol, dormideira; bem-vinda, amarílis, tulipa, azulzinha, batom, capuchinha, heléboro, anêmona, acônito, hortênsia. Jasmim, paciência. Perdão, margarida. É tempo de farra também colorida, naquela outra valsa que nunca se encerra – que gira co'a Terra, que roda co' mundo, intensa, perpétua, sem falta, sem fuga, sem alternativa.

Sempre-viva.

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