sábado, 12 de dezembro de 2020

MacGyver people


Adoro montanhamente as pessoas criativas, inclusive por paranauês de humor: assim como dizem a respeito dos felizes, gente criativa não enche o saco. Gente criativa é desdobrável como o eu lírico fluido e feminino de Adélia; é alegremente adaptável aos quês sem muitos sês, é em geral inimiga de tempo evaporado com resmungo, se bobear é até secreta amiga de umas perrenguices apenas pelo gosto dulcíssimo de ter de inventar solução. (Sempre um parêntese para o que eu nem precisava dizer, mas digo: não estou falando, não falaria NUNCA em tom de louvores à necessidade desesperada dos que "se viram" milmaneiramente por não receberem o mínimo, o básico. Não, não, não. Esses guerreiros hão que ser – claro – exaltados, sem no entanto ser jamais justificável a romantização da guerra em si. Todas as espécies de fomes reais devem ser saciadas com urgência pelas autoridades respectivas; todos os protestos contra a incompetência das autoridades respectivas devem ser acolhidos como uma manifestação do sagrado. Isto posto – e estabelecido em juízo que me refiro aqui às criatividades aplicadas não ao indispensável, e sim ao trivial –, retomemos a programação.)

Sobram matérias na curiososfera que flagram as maiores pérolas do macgyverismo; eu babo: tem lanterninha fita-crepezada nos óculos para virar luz de cabeça, halteres feitos com pneus, pote de sorvete promovido a copa de abajur, compartimento secretíssimo no topo da porta (sim, dentro da porta), gaveta escondida em degrau, corrente de clipes escalada como puxador de gaveta, garrafa pet usada como claraboia (ou como vaso, ou como revisteiro, ou como porta-sapato, ou como estojo), quadro de Onde está Wally? no teto do dentista, monitor velho de computador recauchutado como aquário, carrinho de controle remoto atrelado a esfregão de limpar a casa, esmalte para proteger costura de botão, meia-calça no tubo do aspirador para resgatar pequeninices extraviadas, cabide com pregadores para segurar aberto o livro de receitas. Um mundo de maravilhamento. Gera uma onda de crença na redenção humana ver que tanto sujeito, tanta indivídua, tanta mente desconfiada dos limites riu na cara do previsível e lançou um hold my beer; é dessas minipaixões pelo ataque aos miniproblemas que se encorpam as maxigenialidades científicas, comprometidas a enxergar o mundo feito criança enxerga massinha, com aquele rio e aquele riso de tudo-pode-ser correndo no olho.

Cérebros assim inundados de gambiarrina, prontos a tudo abraçar como opção ao redor, se mostram mais classicamente nus de preconceito, mais arborizados de sinapses, mais macios a informações, mais tocáveis pelo novo na vida e na arte e na linguagem, mais respeitosos de alternativas, mais amorosos de diferenças, mais aprendizes, mais interessados, mais interessantes. São gente de inteligência feliz, vergável, apetente de descobrir e saber, líquida e escorrente pelos nichos onde as rigidezes não penetram; gente de inteligência perenemente em mode on, acendível e não ranzinzenta no desafio – safa, contorneira, joão-grila. Gente, enfim, que os brasileiros deveríamos ser por vocação de malemolência, mas que a praga bolsonara vem parasitamente drenando de vida, saúde, afeto, alegria; e vem cobrindo, em contrapartida, de fel, zanga, burrice, cafonice, malquerença, desvario, desvontade fastienta de aprender e acolher o inédito, repulsa pelo franco e apego ao falso. Somos um gigante por potencial que dementadores de Q.I. lilliputiano fizeram refém. Somos um MacGyver recebendo ordens de Biff Tannen, um James Bond escravo dum Homer Simpson. Somos, na ferrugem ferro-velha, o extravio duma joia.

Esperando a mensagem da garrafa que vai servir de claraboia.

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