domingo, 13 de dezembro de 2020

As boas maneiras


Engoli o engulho e li a reportagem do UOL (que não vou linkar aqui, desculpem) sobre o "curso de boas maneiras" promovido por Carol Celico, ex de Kaká, e Fátima Scarpa, irmã do respectivo Chiquinho. Deixo com vocês o iniciozito da matéria apenas para sentirem o naipe da grade curricular:

"A mulher está no restaurante, com o marido e um grupo de amigos, e sente sede. O que fazer?

'Nunca peça água diretamente ao garçom. Quem tem de fazer isso é o marido. E outra: a conta é do homem. Vou continuar insistindo nisso. Se tem homem na mesa, pelo amor de Deus, gente, a obrigação de pagar é dele!'"

Conselhos de dona Fafá Scarpa, que li mareada a ponto de quase pedir abano à cartela de Dramin. Dois parágrafos de aberração e o fantasma das vesículas passadas (a minha já se foi em saudosa memória) deu triplo twist carpado no túmulo: MEQUIÉ ISSO DAÍ, MEU CONSAGRADO?? A mulher não – engasgo – pode – engasgo – pedir água – cooooooof! – ao garçom?! É então etiquetoso nas rodas que os mesmos seres capazes de sangrar por uma semana sob uma passeata de hipopótamos no útero, os mesmos seres capazes de sustentar peso e náusea e diurese maluca e náusea e calor e apetite e falta de apetite e falta de posição e náusea e náusea durante quase um ano (em nome da multiplicação da espécie, que estaria encerrada há séculos se ovulação desse em homem), os mesmos seres capazes de vencer os afogueamentos e securas da meia-idade, os mesmos seres capazes de ter o peito esmagado e a vagina adentrada nos necessários exames – NÃO POSSAM levantar o dedinho e cuidar da própria sede, NÃO POSSAM sacar o cartão e bancar a própria fome sem a escolta dum macho paladino? Estou até agora e até aqui de gasp-gasp com o despautério atravessado na garganta.

Na boa, meus fofos, assim não tem como tirar a razão dos francesinhos que sentaram o cacete em Versalhes. A que raio de ser humano, aquele do tipo carne-osso-vísceras, servem essas ridiculices, essas convenções idiotas, esses combinados aleatórios de ninguém? Para quem e para que esses briochismos, com que objetivo legislar estupidamente sobre o mínimo dos gestos, sobre os dedos, sobre os pés, sobre os sossegos, sobre os guardanapos? Entendo que se recomende o óbvio da cortesia: não apontar, não cutucar, não falar alto, não promover enfim nenhumas formas de desconforto ou incômodo, nada que perturbe ou constranja o alheio. Cercear as gentes – especialmente as mulheres – de nove-horices tolas, de regrinhas porcelânicas, no entanto, é o auge do constrangedorismo, é o espartilhamento da naturalidade just because. Aliás, just because não, sabemos bem: sempre interessou e continua interessando que as fêmeas sejam restritas e bibelozadas, exatamente como sempre interessou e continua interessando que os bem de vida se encastelem em seus códigos absurdos. Exclusões de classe que fornecem alfafa para preconceito são coisa mais velha que dormir deitado.

Quando na verdade o manual é direto, é translúcido: gente é para ser cuidada, acabou-se. Mas não cuidada de cuidado artificial e cretino, que inventa fragilidades onde não há a fim de cortina-fumaçar a manutenção das que não deveria haver; cuidada, sim, com força de rede, com atenção de abraço, com alma de equipe, pronta a ser resgate na queda. Mandar bem nas boas maneiras é se assumir elo – entre o exausto e o repouso, a fome e o prato, a febre e o trato, o desabafo e o ombro, o exílio e o afeto, o tombo e o colo, a fala e a escuta, a falta e o peito. Acolher como manda o figurino amarrota o figurino; amar amassa, dispor-se descabela, manter os filhos devidamente queridos e brincados mancha o modelito, plantar oxigênios põe terra sob as unhas, desatolar veículos que vão socorrer o ermo cobre de lama os sapatos. E nada mais polido, nada mais phyno; gente chique no último enche mesmo a boca, a bola, a vida do outro – e não enche o saco.

Humanidade é troço que só veste como uma luva depois de cortar a etiqueta.

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