terça-feira, 22 de dezembro de 2020

As cem existem


Um poema-flechada de Loris Malaguzzi declara lindamente que "a criança tem cem linguagens (e depois cem cem cem) mas roubaram-lhe/ noventa e nove./ [...]/ Dizem-lhe: de pensar sem as mãos/ de fazer sem a cabeça/ de escutar e de não falar/ de compreender sem alegrias/ de amar e de maravilhar-se só na Páscoa e no Natal./ Dizem-lhe: de descobrir um mundo que já existe/ e de cem roubaram-lhe noventa e nove./ Dizem-lhe: que o jogo e o trabalho/ a realidade e a fantasia/ a ciência e a imaginação/ o céu e a terra/ a razão e o sonho/ são coisas que não estão juntas./ Dizem-lhe enfim: que as cem não existem./ A criança diz: ao contrário, as cem existem".

As cem existem, e não precisa nem um pouco ser criança etária para se enervar absurdamente com esse povo binário, de coração seiscentista e neurônios de gesso. O que me irritava em eu-menina permanece em estado de irritância; uma das coisas, aliás, que lembrei logo ao esbarrar com o poema – por ter muitíssimo a ver com a poda de noventa e nove linguagens –, era o hábito de a adultez que me cercava dizer: não mexe. Claro, em algumices muito quebráveis, muito desequilibráveis, muito desarmonizáveis a gente não mexe. Se machuca, arranha, corta, queima e iguais desastres, a gente não mexe. Mas às vezes é um item da loja que não nos ameaça as mãos e que nossas mãos não ameaçam; às vezes é um livro, uma criatura de pano, uma caixa de sucrilhos, uma embalagem modelada para a sedução em que precisamos, sim, mexer – porque "veja com os olhos" é o mote adulto mais disparatado de todos os tempos. Olhos?? olhos têm limite de mais para darem conta de sabença; vê-se com eles em primeiro flerte, em chamamento, porém olhos não manipulam até acessar todos os ângulos, olhos não atingem a percepção do veludo, olhos não aproximam o objeto de estudo do nariz (OK, péssima ideia numa pandemia, mas não tinha pandemia neu-menina). Olhos só conhecem numa língua, e descobrir é poliglota. Nascemos e crescemos poliglotas para mundo – até que os nãos dos que foram encaixotados começam a encaixotar-nos e a nos tornar futuros encaixotadores. 

As cem coisas existem juntas ainda assim. É possível ser profundamente religioso e acreditar profundamente no científico, inclusive como uma celebração fabulosa de tudo que se entende como criação. É possível amar o país onde se nasce e criticar com frieza clínica cada um de seus despautérios. É perfeitamente viável ter fascínio viajante pela Europa ou pela África e ser insanamente feliz na Disney. É totalmente cabível (recomendável, por sinal, já que filho é MUITO mais para sempre) ter atuação profissional excelente e sair mais cedo às quartas porque é dia do cinema com sorvete. Gente é para tudo que resulta bom; pode ser gênio na astrofísica e no violino, pode ser Nobel e ler HQ da Turma da Mônica, pode ser Dr. Jones na universidade e Indiana em todas as demais ocasiões, pode curtir funk e Beethoven, pode ser uma vovozinha boleira nerd, um surfista carateca metaleiro, uma costureira fotógrafa velejadora, um escultor de noivinhos para bolo viciado em problemas matemáticos. Tudo pode ser, se não tiver na base uma exclusão conceitual (nenhum fascista há de ser considerado uma pessoa iluminada, por exemplo, visto que uma das raízes devora e elimina a outra); inteligências se brincam, se enriquecem, se entrelaçam, mutuamente se fecundam e gestam mundos que andam à espera de existir: os melhores. Aqueles que (a)gentes da estagnação fingem aguardar, fingem cobiçar – porque pega bem oxalar mudanças –, mas que fora do Face são incapazes de estimular ou promover.

Mexam sim nas prateleiras do mundo, pessoas sobejantes, excessivas, criativas; mexam, mexam-se, transbordem-se em cem e depois cem cem cem. Que desvios nos desviem para tempos repletos de também.

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