sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Verdades secretas


E a família americana que, totalmente ao acaso, realizou um de meus sonhos douradíssimos? Galera se mudou para uma casa nova (nova para esses moradores, bem entendido) e simplesmente descobriu que a escada "levantava" ao estilo alçapão, revelando passagem-secretamente um muquifinho onde estavam guardados vinhos de pelo menos meio século, além de pedaços de madeira, cachimbos e outras antiguices. Cá fico eu fascinada e invejante: sou simplesmente ensandecida por passagens secretas, bibocas ocultas, artefatos escondidos, cartas e diários reencontrados, tudo isso que alimenta de literatura e cinema a rotina certinha e medidinha. Amo histórias – mas creio que, ainda mais que às histórias, amo o desvio das histórias; o que não é devassado, o que mora nos recônditos e recôncavos com cheiro de limo e pedra, de umidade e papel amarelo, romântico, lírico, poético, vulcânico. As almas tristes que não foram acolhidas, os amores que driblaram montecchios e capuletos, os prisioneiros injustiçados, os refugiados protegidos, os parentes clandestinos, tudo o que várias categorias de desesperos humanos acobertaram com melhores ou piores intenções. Tudo que edifica a gigantesca cidade subterrânea ao cânone, o subconsciente coletivo e monumental debaixo da pele que habitamos. 

Tá certo que a descoberta dos americaninhos não foi, ao primeiro look, daqueeeelas mais escabrosas; mas super me bastava identificar o mecanismo da escada fake, o quartinho pirata, e estaria feita na vida. Não ia sossegar na poltrona enquanto não esquadrinhasse quem, quando, como, onde, por quê; enquanto não mandasse descer o arquivo completo da biblioteca local, dos registros de imóveis, do cacete a quatro, até sherlockear satisfatoriamente a trama in-tei-ri-nha de como a casa acabou presenteada com a pequena Sala Precisa. Esta seria, aliás, meu esconderijo e refúgio – ninguém tasca –, com as devidas livraradas e os devidos sofás, que só não poderiam ser instalados antes de um pente finíssimo no cômodo: vai que ainda brota uma mensagem malocada num buraquito, um túnel cimentado, um esqueleto na parede? Sim, vi muito CSI e muito Criminal minds neste mundo, o que, entrando em reação química com as narrativas góticas dos mil e oitocentos, não podia realmente prestar. Deu nisso; uma criatura que efetivamente considera a possibilidade de haver gente emparedada. Não digam que não avisei com que tipo de mentecapta vocês estão lidando.

Mas não é gente morta que me interessa (I mean, não pelo fato de estar morta); é gente viva, oblíqua, enviesada, cujo enredo diagonal escapou aos autos, escorregou pelas frestas, mocozou-se ou foi mocozado num universo paralelo. Os anjos tortos drummondianos, desses que vivem na sombra, gauches na vida; os que precisam ou precisaram existir na alternativa, por alguma razão mutilados da superfície. Não à toa – e olha que desde muito antes de CSIs, até de gotiquices românticas – tive sempre o mais profundo amor pelo Fantasma da Ópera, ícone dos rejeitados, um rei dos atingidos pela crueldade que reside à tona. Ternura, também, pela Fera, pelo Homem da Máscara de Ferro, Quasímodo e todos os semelhantes domiciliados no quarto escuro, todos os espíritos humanos relegados ao alçapão (mesmo que numa torre, vocês entenderam), todos os desprezados, os desamados, os varridos; tudo que é ou já foi respirante, suspirante, mas sem ter muito a que aspirar. 

Meta acarinhada: topar e destampar uma dessas quaisquer caixinhas de Pandora particulares – não liberadora de males para o mundo, no entanto, e sim liberadora daqueles que os males do mundo aferrolharam. Pouca coisa me seria mais tocante que realizar (e fazer realizar) o sonho da saga própria.

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