sábado, 30 de janeiro de 2021

Nós que aqui estamos

Um dos aniversariantes de hoje, o escritor inglês Walter Savage Landor, declarou agudamente: "Não devemos ceder a visões desfavoráveis da humanidade, pois, fazendo isso, levamos os homens maus a acreditar que eles não são piores que os outros, e ensinamos aos bons que eles são bons em vão". Devo concordar com Landor e seus 246 aninhos de pura sabedoria. Não temos, por princípio, o direito de apertar o botão que apertamos por preguiça – o tal botãozito de rotulação automática das gentes, nos piores moldes dum Google Tradutor; afinal, como resumiu o autor mui didaticamente, cair na tentação da metralhadora de amarguras nivela a normalidade humana muito, muuuuito por baixo, e acaba validando exatamente o que pretendemos combater. Típico encaminhamento de profecia autorrealizadora: cravando que a humanidade inteira é uma bosta e virá por isso a destruir-se, eximimo-nos covardemente do compromisso de impedir a destruição (já avisamos, não avisamos?) e reforçamos as condições ideais para essa mesma destruição, que só pode ser evitada caso uma quantidade bem razoável de criaturas creia poder evitá-la – caso uma quantidade beeeem razoável de criaturas não se enxergue nem corrompida demais para executar algo que preste, nem otária demais por tentá-lo. Apesar de toda a perplexidade, de toda a tristeza, de toda a exaustão, não podemos ter a AUDÁCIA de condenar nossa espécie à morte. Sobretudo de antevéspera.

Mais ou menos como em família: questões delicadas são resolvidas no âmbito privado, o apoio é manifestado no público (certo, a Nasa não nos tem dado esperanças de conseguir sair do privado quando a família equivale à totalidade do planeta – mas para melhor efeito psicológico vamos fingir que é o contrário, que é tudo público, que é portanto rude e desleal envenenar quem quer que encontremos pela frente a respeito de nosso clã). Direitinho como em família, há membros que eventualmente passam do point of no return, e há laços que por esse motivo precisam ser cortados, convívios que não mais podem se manter após se terem derivado em violência(s). Casos assim não são os principais componentes de núcleos familiares, entretanto; a maior parte das relações não se constitui de abuso, ameaça de morte, terrorismo e barbaridades afins. A maior parte das relações, em todos os níveis, constitui-se de contatos mais ou menos harmônicos que às vezes se esgarçam, tentativas de acerto misturadas com alguns vacilos, entendimentos-padrão polvilhados de desentendimentos momentâneos: nada a desesperar, nada a desiludir, nada que não tenha jeito. Não é justo etiquetarmos a família como entidade cronicamente inviável devido a situações escabrosas que são o desvio, tanto quanto não é justo darmos a raça humana por perdida com base em exemplos que, longe de a representarem, a renegam.

Sim, maldades e bizarrices se destacam no noticiário, causam fúria e furor, fazem furdunço – porém não são presidentas ou embaixadoras de nossa natureza. Na porção maior do tempo e das estatísticas, a humanidade não mata, não estupra, não rouba; muito ao inverso: acorda antes do galo para sustentar honrosamente os filhos, pesquisa a vacina da covid, pesquisa preços no mercado, lê um capítulo do livro no metrô, recolhe doações, compõe o hit do verão, canta com o caçula os hits do Mundo Bita, bate um bolo, bate uma bola, merenda na escola, liga no aniversário da tia, lava todo o acumulado na pia, malabariza no sinal fechado, malabariza no orçamento, vê um episódio da série logo antes de dormir (para acordar com o galo), compara amaciantes, compara shampoos, come, reza, ama. Na porção ridiculamente maior do tempo, a humanidade somos bem nós – euzinha que lhes escrevo, vocezinhos que me leem –, nós os inofensivos, os indignados, os bem-intencionados, os avassalados pelo horror que tão mais nos assusta quanto mais nos é estranho. Nós que vivemos e fazemos viver, nós regra assombrada pelas exceções, nós sinopse original atacada por um ou outro enredo secundário.

Revogam-se difamações em contrário.

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