sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Como eu (já) era antes de mim


Uma daquelas perguntas tchan que cheguei a ver, mas que não respondi há três posts foi a instigante "O que em você ainda se parece com você quando era criança?". É questão de refletir meditantemente antes de arriscar um relatório, sem ainda assim eliminar o risco de redesenhar um eu-de-infância glamourizadinho; acho, porém – e não é pouco –, que de alguma forma estou dentro das expectativas da criança que fui, e ela provavelmente não me olharia com decepção. Já dá para dormir em relativo sossego.

A primeira semelhança indelével que me ocorre com os anos de chuquinha é a aversão profunda, eterna, irremovível aos estudos numéricos, exatos, ao lado do amor proporcionalmente irremovível por toda a miçangalhada de humanas. Ouço daqui a incredulidade dos muxoxos, mas juro: lembro com limpidez o momento em que, aos seis anos e durante uma tarefa cheia de numerinhos na escola, deu-me o clique infinito – odeio matemática, amo português. Seis anos ou cinco; nunca mudou. Eu era e continuo sendo a pequeninita das cores, das flores, das letras, dos livros, dos gibis, das histórias, dos recortes e colagens, de tudo quanto fosse desamarrado e technicolor, isento de respostas excessivamente únicas. Tinha milmilhões de vezes mais interesse no artesanal Mãos mágicas, um programete sem recursos nem cenário que ensinava brinquedos de papel e assemelhados, do que na só-recepção de um programa da Xuxa com sua fórmula que me enfastiava (sim, era uma fórmula, e sobrava pouco espaço para criação; nem na hora do beijo "pra minha mãe, pro meu pai e pra você" a galerinha saía do script). Cada coisita que não prometesse alterar-se ever me garantia aridez e chateação – assim permanece: atravessei toda a vida escolar sobrevivendo a químicas e físicas com sofrimento, horror, engulho; pensei morrer de felicidade quando a faculdade de Letras espantou os cálculos para sempre; até nas revistas A recreativa passo o rodo nas atividades deixando em branco, unicamente, as algebrarias do sudoku. Quem me conhece somente de (suposta) boazice externa não acredita a fúria de rebeldia que me expulsa de tudo quanto me parece gaiolíssimo. Tende a piorar, espero.

Outro parentesco comigo é nossa vibe de observar gente, querer saber gente, valorizar gente mas nem por isso desejar conviver com gente. Fui criança tímida; considero-me, no entanto, menos propriamente tímida do que introvertida. Assim como nos outroras, sou de convívio dócil e fácil, o que não significa que não continue preferindo brincar sozinha se possível: curtia estar num mundo sem cansativas interferências sobre minha galáxias particulares, e curto agora a mesma independência de processos, o mesmo ensimesmamento, a mesma paz silenciosa. Não o tempo todo, claro, porém com honestidade e desenvoltura suficientes para encontrar a manifestação ideal de existência nestes moldes quarentenados. Que mérito tenho em respeitar o confinamento direitinhamente, se tudo que queria da vida, anyway, era beijar na boca e em matrimônio azideia de Rousseau?

Prossigo também com a velha tendência de garrar apego aos objetos não caros (para patricinha nunca tive nem terei engenho, amém, assembleia), e sim banhados de utilidade sentimental, na qual melhorei de traquejo mas preciso ainda botar muito (des)empenho – até o fim dos dias, presumo. Outra parecença: insisto em não preferir os alfa, em mais-querer os frágeis, os vulneráveis, os desescudados (salvo-conduto para o Capitão América, que é um fofo), os subestimados, os incompreendidos. É, igualmente, coisa para até o fim dos dias – ser uma destra de coração esquerdo, frequentadora perpétua do lado bom mas underground da Força. 

No geral, mantenho-me muito a mesma criaturinha domada e indomável que obedece contornando, que sorri se subtraindo, que é tão cumpridora das obrigações quanto lhes é avessa, que não tolera cangalhas nem de brinco nem de maquiagem, que tem o impulso acarinhante e resiste a ser acarinhada, que é enfim bastantemente o bicho do mato de outras eras, com muito mais tarimba e jogo de cintura para sê-lo com tão maior disfarce quanto maior franqueza. Arrisco que sejam mais de 90% as essências originais que fui conservando e burilando – mas a porcentagem exatinhexatinha vou me recusar amorosamente a calcular. Que não sou obrigada.

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