quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Proposta de intervenção

É como dizia há alguns dias uma conhecida de Face: redações de ENEM acabam se convertendo, apesar dos temas invariavelmente relevantes, em enfadonhinhas receitas de bolo. Antes o fossem, aliás, porque quase ninguém se opõe a que nasçam bolos à farta, mesmo dos mais simplildos (particularmente prefiro dessas exatas massas neutras, os bolos de bolo que a gente come 5.987.993 vezes sem enjoar nada, só mastigando uma delicadeza com gotas de baunilha); em contrapartida, uma balofa maioria certamente não deseja ler 5.987.993 textos com andaimes iguais, fachadas semelhantes, miolo saborizado com a mesma bat-essência, legos da estrutura dispostos da mesma batforma. Quem dá ou recebe aulas referentes à montagem da dissertação enêmica conhece bem o step by step do negócio – as funções que a introdução PRECISA cumprir, os conectivos sacrossantos que PRECISAM inaugurar parágrafos, a proposta de intervenção que PRECISA ser apresentada para combater a problemática-mor do tema. Varia praticamente nadíssima, e é tal qual minha conhecida observou: inclusive as propostas de intervenção, que em tese demonstram um engajamento pessoal e intransferível do candidato com o que há a ser resolvido, não saem nunca de um padrãozinho mil e mais mil e mais mil vezes reiterado. Campanhas na mídia, introdução de disciplinas nas escolas, projetos de lei (estou aqui parafraseando aos trancos, e de incerta memória, a postagem lida) – sempre essa ladainha dos estudantes, que obviamente fazem o correto e não têm qualquer obrigação profissional de ir muito além por estradas em que são leigos. Como exigir que, em tão pouco tempo de produção textual e biográfica, se aprofundem horrores? Não; redigem o trivial bem redigido, não piram e passam.

Entendo completamente a importância de se avaliar uma criatura pela mínima capacidade de enfileirar ideias, dar liga em argumentos, provar que distingue um portanto de um entretanto e que sabe manejar os todavias e outrossins; entendo que se demande do aluno uma razoável proficiência em sustentar o pensamento sem contradições e desvios bizarros. Entendo, igualmente, que se consiga chegar a uma correção bem mais técnica e objetiva dentro dos moldes da dissertação do que se poderia pretender se o enunciado pedisse um poema, uma descrição, um conto, uma crônica – nem teria cabimento requerer habilidades artísticas de candidatos tão diversos, muitos decididamente voltados para as matérias exatas. Não discuto nada disso. Mas não posso deixar de concordar com a autora do post quando lamenta a nhenhenhice formulaica em que a redação "oficial" acabou se enfiando, com tão estreitinhas frestas (e ainda mais estreitíssimas festas) de respiração, com tão poucas aberturas para que voe quem é de voo, para que se colem os parágrafos com outros métodos menos explícitos e still eficientes, para que se opte por uma abordagem mais literária, para que se prefira atravessar todas as linhas refletindo sobre alternativas em vez de dedicar a maior parte delas a dizer o que a folha de prova já diz. É viável para a banca examinadora? ignoro, e estou autorizada a declará-lo com a liberdade feliz que os alunos não têm de ignorar nadica, eles, os solucionadores do mundo. Acredito, porém, que valeria a pena botar empenho sincero em rever o grande Bhaskara de gesso que o texto mais temido do ano se tornou.

É aquela coisa, a gente não quer só comida; a gente não quer, na universidade, só o pessoal que obedientemente exibe sua eficácia, seu talento de encaixotar na previsibilidade o imprevisível. A gente quer – e está precisando ULTRA de – uma galera com sensibilidade de enxergar o impensado, com criatividade de bolar um planeta que deveria ser ou ter sido, com empatia de se jogar no projeto a ponto de vir com surtadas comoventes: a criação duma moeda sob outros critérios, o desenvolvimento duma língua específica, o envio de uma carta coletiva para o líder da nação (estou pensando, claro, em totais hipóteses, já que não temos líder no momento), o investimento pesado nos estudos do teletransporte. A gente quer gerações menos guiadas, menos treinadas, mais poéticas, mais filosóficas, mais subversivas, mais humanísticas, menos capitalísticas, com repertórios fresh vestidos de amarelo, rosa, turquesa.

Já temos milhões de correntes; precisamos de mais forças contra a correnteza.

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