sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Somente a verdade


Foi divulgado ontem: depois de passar consideráveis 26 anos no corredor da morte, o norte-americano Eddie Lee Howard foi inocentado das acusações de estupro e assassinato duma senhorinha mais do que octogenária. Ao que consta, a condenação inicial se baseou em marcas de mordidas que, revistas agora pela perícia forense (devido ao pedido de revisão do caso providenciado pela defesa de Howard), provaram-se inconsistentes e foram completamente descartadas. Eddie saiu do corredor maldito em dezembro e se viu definitivamente exonerado de toda a treta, pela Suprema Corte do Mississippi, no último fim de semana. O #sextou mais sextado duma vida inteira. 

Casos como os de Eddie não passam por criaturas minimamente sadias do córtex sem levantar as questões que gelam a espinha: e se a execução já houvesse ocorrido? e se não tivesse havido condição de o réu alcançar uma reanálise das evidências? e se tais circunstâncias já se combinaram – e se é quase uma grosseria irônica: CERTAMENTE já se combinaram – dezenas, centenas, milhares, milhões de vezes nos sistemas penais dos EUA e dos outros pena-capitalizadores pelo mundo, levando ao assassinato oficial dum número insabido de inocentes? Digo "oficial" porque, claro, sabemos bem a metralhadora giratória que os Estados costumam ser na cotidiana e clandestina missão de exterminar pobres, pretos, povos nativos, imigrantes e demais minorias étnicas/econômicas; nações como a nossa praticam há décadas, com proficiência, os homicídios do oops (oops, a bala perdida pegou mais um menino negro; oops, a queimada comprometeu seriamente as terras indígenas); mas me atenho aqui às que somam, a esse horror diário em off, o horror on e legislativo da morte prescrita em tribunal. A morte naturalizada como alternativa de civilização – coberta de ritos, atas, burocracias, meritíssimos, e nem por isso isenta de negligências, discriminações e processos viciosos. Nem por isso menos bárbara.

Porque não posso não ver o ato de matar um ser humano como barbárie (a não ser quando se trata da ÚNICA chance de defesa pessoal ou de outrem, e estritamente em circunstâncias de risco físico, não de sustentação da propriedade). Isso independentemente de inocência ou culpa do réu: uma vez que o sistema carcerário já tenha o sujeito em custódia e se responsabilize por afastá-lo da sociedade – sendo caso de crueldade incapaz de convívio –, inexiste a ameaça iminente que justificaria a ação radical, e todo ato de destruição por parte do governo configura apenas vingança. "Ah, mas e se o cidadão tivesse matado ou estuprado sua mãe, seu filho, sua filha? Você não ia querer que ele morresse?" Humanamente, muito humanamente, talvez até quisesse, num movimento compreensível de raiva e dor profunda; porém não são nem devem ser as vítimas que tomam para si o julgamento público: é o Estado, que em tese não tem como combustível a vendetta e, em tese, ali está para garantir a impessoalidade da coisa. Com ódio não vemos, nunca vemos, e definitivamente também não estamos livres – ainda que o processo não seja conduzido diretamente pelos mais afetados – de contaminar raciocínios e evidências com a pressa e a pressão da mídia, os interesses políticos, os preconceitos inconfessos. Se, entretanto, o sistema se corrompe e mais tarde é flagrado injusto (como na história de Eddie Howard), tem uma mínima chance de devolver a liberdade àquele que privou da liberdade, ou de devolver os bens àquele que privou dos bens; o tempo de prisão obviamente não pode ser devolvido, mas havendo vida há sempre uma brecha para que algo significativo se construa. Não havendo vida, fecha-se totalmente o portal, o que me faz eterna e intransigentemente advogar sem pestanejos: ninguém pode tomar a um condenado aquilo que não lhe poderá de algum modo devolver, em situação de erro absurdo. Não produzimos vida; não cabe a nós tirá-la.

Para Eddie, a quem ela recém-foi restituída dentro das curtas possibilidades humanas, todos os meus votos mais quentinhos; sobretudo que lhe tenha restado muito mais agudeza e generosidade no ler o mundo do que este empregou em lê-lo. Que essencialmente, para a melhor pessoa que ele viria e virá a ser no caminho, o tempo de injustiça não tenha sido letal.

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