segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

O que será, que será


Adoro essas histórias. Em 2015, o colecionador de câmeras irlandês William Fagan comprou uma Leica III fabricada 80 anos antes. Dentro da máquina, veio o brinde que faria a loucura de qualquer ser humano minimamente romântico e curioso: 22 fotos de um casal em viagem pela Europa na metade do século passado. Fagan, como pessoa de sensibilidade vintage que deve ser (ninguém coleciona velhos equipamentos fotográficos à toa), embarcou na naturalíssima trip de descobrir quem são ou eram os retratados, e recorreu à ajuda da amiga Mella Travers – dona do estúdio The Darkroom – para restaurar as imagens o mais detalhadamente possível. Após a divulgação das fotos no site Macfilos, começou um furduncinho nas redes em busca da identidade do casal viajante, infelizmente ainda não obtida; sabe-se, porém (AMO essas análises de especialistas, CSI style), que o carro flagrado pela Leica foi registrado por volta de 1948, e que os comerciais, veículos, desenhos de cidade etc. pilhados pela câmera correspondem marromeno ao ano de 1951. Certo, também não gosto nada de enredos incompletos, mas prometo que Fagan está se esforçando em sua missão indiana-jônica, escarafunchando pistas e incentivando o contato de gente que reconheça os heróis fotografados. Inshalá.

Enquanto a verdade não vem lindamente epilogar essa trama de tamanho potencial cinematográfico, não custa lhe dar uma ou outra sugestãozinha de roteiro, elaborando vidas plausíveis para o casal armazenado na Leica mágica. A moça sorridente de vestido claro estampado poderia (exemplo) ser uma francesita recém-casada de 21 anos, chamada Anne-Marie Beauvau – para seu marido, Albert, apenas Marie ou Mariette. Ele, engenheiro quase trintão, é tão tímido quanto Marie é fazedora incandescente de amizades, e percebeu que se apaixonara pela filha do velho cliente de seu pai quando começou a errar cálculos e ter vagos embrulhos no estômago, dias após uma reunião na casa da jovem em que ela fora a única a lhe dar largos minutos de atenção, contando sobre seu sonho de cuidar de animais e conhecer boa parte do planeta. Apesar de descrer em suas chances com a menina cultíssima que era a alma das festas, Albert a pescou com suas fotos amadoras de aves e paisagens, ensinou-a a usar a câmera de estimação e teve o primeiro beijo roubado por ela numa sessão de cliquices ao ar livre. Na lua de mel, claro, uma road pela Europa, para começar a realizar os projetos balofos e julio-vérnicos de Marie, a quem o engenheiro não nega nadinha. Por infelicidade, a querida e cupida Leica escapuliu do carro sem que ambos percebessem, no solavanco brucutu duma estrada horrenda; foi encontrada por um caminheiro que, precisando de uns trocados, empenhou-a na casa do ramo mais próxima. Da casa de penhores, a câmera passou a um ou dois antiquários até pular no colo de William Fagan, herdeiro da lua de mel nunca revelada.

Ou: a jovem protagonista dos cliques é a americana de ascendência italiana Betty Panazzolo, que acabou agorinha o high school e, contra a vontade dos pais, se inscreveu numa universidade inglesa com a intenção de estudar literatura medieval e similares medievalices. Assim como a Catherine Morland de sua amada Jane Austen, Betty passou a adolescência imersa em romantismo gótico; é introvertida, romanesca mas tinhosa: praticamente fugiu de casa, antecipando a ida para a Inglaterra, a fim de se desembaraçar da pressão feita pelos familiares para que se casasse com o primo de segundo grau, Tiziano (Tizzo). Na terra da rainha, a rebelde fofa conheceu o escritor Hector Bronwen, palestrante em sua faculdade – com quem, por dois ou três meses, trocou algumas cartas. O caladão e intenso Bronwen acabou "sequestrando" sua Honey Betty para uma trip intelecto-amorosa pelas zoropas, durante as férias universitárias; em seguida, no entanto, desapareceu da vida de sua musa, pois já sabia ter a saúde fatalmente abalada e queria que o relacionamento de ambos terminasse flutuante e lírico, sem peso para a juventude de Betty. Ela inconformou-se, quase perdeu um semestre letivo caçando o rastro de Hector, porém só o descobriu por um amigo comum após a morte do autor, cujos pertences haviam sido leiloados para cobrir dívidas – inclusive a velha Leica, que guardava a primeirúltima viagem do casal e acabara esquecida por Bronwen com o agravamento de sua doença. Sniiiiif.

Por ora, tudão pode ser: as cenas princípias dum casamento eterno, uma fugidinha de ligações perigosas, as férias de primeiras bodas, o percurso feliz até um orfanato onde seria adotado o filho mais velho, a expedição de um casal de cineastas à cata de narrativas e locações suspiráveis. Todos os enredos brincam de ser verossímeis dentro dessa cápsula de amor (me deixem pensar que só pode ser amor) cristalizada há sete décadas, aguardante de que alguma fala a descriptografe, de que alguém a tire de seu talvez – e a escreva como era uma vez.

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