terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Só por hoje


À procura de imagens outras, esbarrei e ri com essa aí de cima: "Make today tolerable" ("Faça [o] hoje tolerável"). Ri a princípio, diga-se – porque é impossível não achar graça do contraste desse "coach realista", ao estilo Dona Anésia, com as mensagens fofinhas-cintilantes-gratiluz de otimismo histérico que andam pela rede –, porém reconheci em seguida que a coisa não é necessariamente cômica, é até bastante sisuda e filosófica; trata-se de um convite à vivência consciente de suas limitações e momentaneamente livre do peso de ser perfeita, afinal. Não é, óbvio, uma rejeição à felicidade ou à perfeição, e sim um elogio ao distensionar da rotina, ao encarar do dia como um job – não como um contrato vitalício de sucesso e bom humor. Grupos de apoio do tipo Alcoólicos/ Narcóticos Anônimos já trabalham há tempos com essa felizofia do êxito em gotas, o só por hoje: só por hoje não bebo, não me drogo, não me desespero, não cedo a meus monstros (e, se ceder, amanhã começo um só por hoje novinho). Só por hoje não me obrigo a alegrias delirantes. Só por hoje me concedo a suficiência dumas vitórias miúdas.

Acredito que, em termos psicológicos, seja de fato muito mais reconfortante agendar-se um pacote tolerável de 24 horas do que um efetivamente bom, DESDE QUE não venha instalado traiçoeiramente o aplicativo É Só Isto Mesmo Que Eu Mereço. Merecemos mundos, merecemos tudos; não fomos de modo algum – ninguéns – programados para o meramente razoável, para o contentamento perpétuo com o qualquer, com o meia-boca. A espécie evoluiria necas se o fôssemos. Não é todo dia, entretanto, que aurorecemos com espírito de escola de samba defendendo o estandarte na Sapucaí, não é todo dia que nos estreamos com alma de quem achou brinquedo novo sob a árvore de Natal; volta e meia, pulso e pálpebras já amanhecem exaustos, o cansaço nubla todas as janelas e só perdoa transparente a da sobrevivência – precisamente a situação em que se mostram mais sufocantes os estímulos, as exigências da autoajuda barata. Enviar ou receber bons-dias fosforescentes, mantralizar querer-poder-conseguir, forçar-se à urgência de estar radiante porque a data é de aniversário são apenas fatores de maior irritação, de consequente desânimo. Nada mais deprimente do que meta olímpica quando o coração acordou de muletas, nada mais chamante à desistência compulsória do que a bandeirada inatingível; há ocasiões expressamente desenhadas para a subsistência, para a manutenção das funções vitais, não para a cura. Menos ainda para a pós-cura.

E então é caso de se autorizar break e fazer ser tolerável. Até o fim do expediente são umas breves horinhas, participar de social não é obrigatório, o profile pode ficar bem low, bem light, somente o nariz para fora d'água. Até o fim da festa (pós-pandemia) não dói tanto concordar com a cabeça, manter o sorriso discreto, ocupar a boca com uns mastigas e bebes, ir tomar um ar ou renovar a maquiagem a qualquer nuvem de treta. Até o fim da reunião, ninguém há de morrer ou matar certamente; fale-se o mínimo protocolar, anote-se o principal, resolva-se algum joguinho mental de números ou letras se estiver demasiado prolixo e voilà, missão cumprida. Até o fim do percurso, do encontro, da aula, da audiência, da sessão, da consulta, é normalmente possível administrar a precariedade, aceitando-a – há livros e celulares para enganar o tempo, lembranças e projetos para adoçar o momentâneo, exercícios de respiração para oxigenar as forças, canções internas para relaxar os minutos, releituras íntimas do visto e vivido para azeitar os próximos episódios. Há meios de garantir a permanência mínima, a existência recuperante em descanso de tela, enquanto a Grande Sombra não se afasta.

Por hoje, basta.

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