sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Resposta ao tempo


Já disse o extraordinário Millôr que "um homem é realmente velho quando só pensa nisso", e quem há de contestar uma millorice tão genialmente sintética? Um homem é realmente velho, uma mulher é realmente velha, quando toda a preocupação de sua existência consiste em velhar ou em se perguntar, com horror, se já está velhando. Tanto se a cabeça – a ca-be-ça, atenção, não o corpo todito; não serei eu a endossar aquelas reportagens canalhas que incentivam pessoas a trabalhar até os 122 anos – tanto se a cabeça resolve se aposentar o quanto antes do mundo, recolhida em redoma dom-casmurra, quanto se decide mergulhar numa trip louquérrima de transformar o corpo todito num benjamin button, a velhice está lá rainha, imperatriz absoluta. Jovens autênticos são jovens como iguanas são iguanas, como borboletas são borboletas, sem outras autodiscussões senão a de ser, cumprir-se. É-se ou não mentalmente jovem, pronto; quem não o é por turronice vai continuar não sendo, e quem tudo faz para regressar à mocidade é porque já se expulsou dela. 

Jovens d'alma não pedem autorização ou bênção para sê-lo, simplesmente são, com perfeita indiferença ao que vão achar da opinião revista e ampliada, do cabelo que está totalmente a seu gosto, dos projetos de volta ao mundo feitos com naturalidade para depois da pandemia – ainda que "depois da pandemia" encontre esses seres atemporais já com mais de nove décadas, and counting. Não se trata de negar a passagem dos anos, trata-se de prescindir da cronômetro (que é de fato descartável, já que nossa ignorância sobre o ponto final faz um hoje universal de todos os dias; enquanto vivos, diferimos no máximo em quantidade de ontens). Jovens genuínos lá querem saber de cronômetro! pressa de quê? nostalgia de quê? Quando amanhece, amanhece sempre agora, e os depoises vêm ou não vêm ao ritmo dos mesmos 60 segundos por minuto. Podemos e devemos fazer deles toda a economia cabível, vestindo-lhes máscara e higienizando-os com álcool gel para que rendam, rendam, rendam; mas não podemos alterar seu fluxo, revertê-los, desexisti-los, descriá-los, criá-los ao sabor de nossos time issues. Se verdadeiramente moços onde importa ser moço, nós let-it-bemos e let-it-gomos. É requisito de juventude navegar com gula, ser navegada com serenidade, não perder tempo com o próprio.

Haja vista Chico, Gil, Caetano, Simone, Bethânia, Verissimo, Paulinho da Viola, Fernanda Montenegro, Paul McCartney, Mick Jagger, Noam Chomsky: alguém OUSA pensá-los velhos em vez de pensá-los perenes? Óbvio, essas e semelhantes pessoas contam com estruturas infelizmente não disponíveis para todas as terceiras idades, não estou desconsiderando o fundamental dessa questão; com a ressalva penduradinha nos exemplos dados, porém, atenho-me a ilustrar a capacidade vitalícia que alguns parecem ter para produzir beleza muito antes e muito acima de buscá-la, corporeamente falando. São todos lindos os citados, mas não da lindeza empenhada em tingir, retocar, harmonizar facialmente e driblar cronologias; as cronologias estão muito bem dribladas dentro. Costuma existir uma incontornável garotice em quem foi convidando aos poucos o tempo para se abancar e o foi acomodando ao longo da prosa, no lugar de passar anos se consumindo em não abrir a porta e reunir tudo que há de mais pesado para escorá-la. Arrastar décadas de móveis e recursos e posses, fechar janelas, bloquear, bloquear-se deixa o coração exausto e não impede o advento do hóspede inevitável.

Modos que pretendo, como é de praxe e bom-tom, receber com cafezinho e bandeja de cookies o novo espécime queridão de tempo que ora se achega – e já chega tenso, coitado, da pressão que a gente malvadamente lhe sapecou nos ombros por 365 dias e mais unzito. Relaxa, 2021, pode entrar; seja muitão bem-vindo. Só não repara a bagunça.

Nenhum comentário: