quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Operação Big Hero


Lembro que, quando eu era criança, havia uma mescla indecisa de ansiedade com pré-alívio ao pensar na idade adulta: todas aquelas coisas que me pareciam enigmáticas e inadministráveis, OK, era natural que o fossem, eu não precisava me preocupar... muito; ao crescer, obviamente acabaria aprendendo e entendendo equações, política, imposto de renda, orçamento doméstico, remédios a serem tomados, celebrações de toda espécie e seus motivos, o mistério da distribuição de línguas no mundo (então São Paulo falava português que nem o Rio? mesmo sendo no estrangeiro??), a curiosíssima duração do carnaval que começava e não acabava mais – grandes e pequenos dramas dum cérebro excessivamente jovem e, portanto, excessivamente nebuloso. Era só aguardar ser grandão, os grandões sabiam tudo, virar grandão era a cura absoluta para toda espécie de ignorância. 

(Um parêntese para alertar papais e mamães de que nem sempre a confiança infantil numa compreensão futura é assim tão serena, já que os picuchos ainda não estão no futuro e têm várias questões presentérrimas a digerir; adultos parecem ESCOLHER se autoneuralizar e reinventar, com fadinhas e unicórnios, essa época dourada, porém sabemos bem: "despreocupação" é uma pitomba. Criança é um ser tão mais angustiado quanto menos compreende e quanto menos recursos lhe dão para compreender, por acharem que não compreenderia. Eu, sem tendência alguma para romantizar memórias da aurora, nunca esqueci o pavor com que meus 4 ou 5 anos tremeram diante daquela história do "botão da guerra nuclear", ou a neurose momentânea que os meus 7 tomaram do césio-137. Por quê? Porque a gente grande mais bem-intencionada do universo ignora o quanto os pequenos captam entre uma brincadeira e outra – o que não pode ser evitado, mas pode ser amenizado com as informações mais claríssimas. Como eu não pescasse bem a treta do césio, por exemplo, me disseram "que umas crianças tinham brincado com uma substância brilhante sem saberem que era radioativa, e ficaram doentes"; pronto, foi pior: por um tempinho peguei sofrimento de ver qualquer poeira mais ou menos brilhante, sem ter elementos para realizar que, embora no Brasil, a tragédia tinha sido longe e específica, não me faria ficar doente. Provavelmente ninguém percebeu esse breve pânico; eu, no entanto, mais de 30 anos depois me recordo dele com nitidez – e vai daí o alerta, antes de arrematar o parentesão: o fato de ser ingênua não torna a criança mais blindada, torna-a ao contrário mais vulnerável aos horrores do planeta. Prestenção, gente, prestenção. Observem os sinais dados pelos baixinhos a-ten-ta-men-te. Fim do plantão Globo; retomemos a programação normal.)

Qual não tem sido minha surpresa – por que não dizer? o meu mais estarrecido desespero – ao me ver adulta entre adultos que não são os adultos antigamente prometidos, nem concebidos sequer. Claro, sempre houve homens-feitos mauzões, gurias e guris não estão isentos de sabê-lo desde cedinho, até (ou de preferência) por efeito da ficção; mas onde estavam, Senhor? onde estavam tantos homens-feitos BURROS, quando éramos os guris e gurias que olhavam os mais velhos confiados na inteligência humana? Onde estavam, no tempo em que nós-piás éramos diligentemente ensinados a interpretar texto, esses atuais barbados que não sabem interpretar texto? Como é possível que até alguns outróricos heróis da espécie, tipo os médicos que jamais consideraríamos deixar de acatar, tenham virado em parte cúmplices da anticiência, negadores de vacina, receitadores (contra pandemia) de remédio para malária e verme – e na outra parte mantenham a postura científica sim, mas sejam cobrados e questionados por maiores de idade totalmente loucos, totalmente leigos? COMO é explicável que gente que mamou no peito, que nunca teve nenhum comprometimento neuronal, que até ontem entabulava diálogos sem virar um ser hidrófobo, hoje jure-juradinho que houve fraude na eleição americana sim, o Trump tem provas, ele só está dando corda para ver até onde vão os democratas pedófilos satanistas, na hora da posse do Biden tudo vai ser revelado ao vivo, o filho vai sair de lá preso, eles todos serão desmascarados em pool mundial? QUE RAIOS está acontecendo para que milhares, milhões de pessoas antes tão aparentemente cotidianas tenham switchado, sem mais essa nem aquela, para o modo Família Manson

Eu sei, eu também vi O dilema das redes e me encontro aqui quase em desabafo retórico. Sei que a tecnologia prosperou muito mais velozmente do que nosso cérebro é capaz de absorver, sei que os grandes produtos vendidos hoje somos nozes e que o intenso engajamento virtual – especialmente por via whatsappiana – é sucuri que vai se achegando, abraçando, estreitando até esmagar qualquer esqueleto de coerência ou raciocínio. Ainda assim, estudado e sabido, o fenômeno choca, como se acompanhássemos um processo de Alzheimer coletivo, uma deterioração em massa da adultez mental que respeitávamos e à qual enviávamos nossas esperanças de evoluir ao nível Jetsons. Evoluiremos sem dúvida, e sem dúvida já evoluímos consideravelmente mesmo nas ameaçadas agendas humanísticas; mas a mera existência desse povo assombroso, que anda e tecla por aí zumbizado até a negação de si próprio, polui e corrompe todo esforço de vida – é tumor que se hospeda na vida para matá-la. Não conseguirá, sabemos, e por mais que não consiga ainda há de dar muito que sofrer pelo tempo que passarmos limpando a bagunça, superbondeando a verdade estilhaçada, apagando o fogo atiçado, removendo o vômito derramado, remendando as relações molambentas, desatando todos os apocalipses, todos os malfeitos, todas as lambanças.

Dessas crianças.

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