sábado, 16 de janeiro de 2021

Como matar seu dragão


Norte-americanos metem em todos os dias as celebrações mais hilárias e inusitadas, como hojezinho mesmo – o Appreciate a Dragon Day. Por que carambolas atômicas alguém achou fundamental que houvesse uma data para apreciar dragões, não faço ideia (nem São Jorge tampouco; aliás, #xatiado, hein), mas a festividade esdrúxula acabou me lembrando um dito ótimo de G. K. Chesterton: "Contos de fada não dizem às crianças que dragões existem. Crianças já sabem que dragões existem. Contos de fada dizem às crianças que dragões podem ser mortos". 

(Claro, crianças que não sejam pequenos estripadores em formação não estão empenhadas, espero, na morte do fofinho Banguela, de sua namorada fofinha ou de Mushu, o amiguito eddie-mârfico de Mulan. Vocês sabem bem de que tipo de dragão Chesterton está falando, não sacrifiquem.)

Adoro a tirada do escritor porque representa à perfeição uma das "funções", um dos efeitos mais fantásticos e transcendentes da literatura: o de visualizarmos e elaborarmos nossos próprios dragões. Nisso ela é (desconfio será sempre) superior às artes suas irmãs, teatro e cinema/TV, que por ela passam. Por quê? porque na literatura temos o maior acesso possível aos interiores dos interiores, às oscilações e dramas e dilemas e pensamentos e monstros íntimos, o que no audiovisual está atrelado a diferentíssimos recursos, a interesses e interessados bastante diversos – e é por eles suplantado. Não é viável que transposições de páginas para a tela esmiúcem o passo a passo da narrativa interna do personagem, uma vez que, boa parte do tempo, são limitadas pela narrativa externa: gestos, olhares, silêncios, reflexos parcialmente denunciando o que as palavras não estão presentes para escarafunchar. Nas mídias semoventes e faladas, aquela pequena vida fictícia se dá a nós (como que) em público, sem condições de desnudar-se inteira; no livro, porém, seus sentires e pensares se extravasam nuamente – tão próximos, tão a sós conosco, tão no ritmo por nós controlado, que após um período razoável de leitura amalgamam-se aos nossos feito um espelhinho que tiramos do bolso e colamos à altura da voz.

Providenciada essa identificação de alcova, ficamos expostos a um cada vez mais largo repertório de humanices: as nossas, as nossas relidas, as nossas espelhadas, as nossas submersas, as nossas quase completamente transformadas a ponto de não percebermos com imediata consciência a própria posse. E ali também, entre os modelitos humanos pendurados no gigantoso closet literário, moram nossos dragões – na insaciedade crônica de Emma Bovary, na confusão atormentada de Raskólnikov, na angustiante solidão de Hester Prynne, na amargura ressentida de Heathcliff. Nem sempre (fato) os dragões são mortos em linhas de capítulos finais como nos seria de preferência e gosto; não raro os protagonistas sucumbem, a coisa termina em dor de tempestade ou dor de vento frio; mas mesmo a desgraceira ficcional não foge ao nobre compromisso de matar dragões: se os personagens não se salvam, salvamo-nos nós de fantasmas ora retrabalhados, ressignificados, exorcizados por vidas que não vivemos. Estando felizes nossas pessoinhas de papel favoritas, estamos sinergicamente felizes; despedaçando-se elas em seus embates, permanecemos seguros e só metaforicamente despedaçados, aprendendo por catarse com as vítimas que não somos nós. 

Não carece Príncipe Encantado para nos abrir a porta da torre: basta o descer das livres e espontâneas escadas com a certeza de que não nos é estranho o que voa lá fora.

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