domingo, 17 de janeiro de 2021

Memórias do que nunca


Acho engraçadíssimo quando pessoas postam fotos ou trechos de coisas já havidas, porém havidas tão inacreditavelmente que os tais trechos e fotos precisam vir acompanhados do invariável: "Esse(a) desenho/ filme/ novela/ cena/ comida/ banda/ brinquedo existiu mesmo ou foi um delírio coletivo?". É também invariável o fato (desolador) de a coisa ter existido mesmo, não ter sido o delírio coletivo cuja ocorrência talvez salvasse a Terra a nossos próprios olhos; mas sshhh, abafa. Como, afinal, conservar o mínimo de utopia e fé num planeta capaz de COMETER sandália plástica transparente, Restart e As aventuras de Sharkboy e Lavagirl? Fingindo demência, naturalmente; a humanidade já anda com problemas de mais sob o Sol para ainda se ver obrigada a ser 100% sincera no currículo.

Antes que este texto se autodestrua em nome da paz universal, retornando ao pó as memórias absurdas que do pó vieram, permitam-me o exercício perverso de evocar uns tantos delírios coletivos que obviamente nunca aconteceram, sei nem do que vocês estão falando. Aquela bebida multicoloridamente indefinível dos anos 90, Fruitopia – lembram? vou jurar que jamé, mas cheguei a bebericar umas experimentadas e até hoje não entendi o bagulho; confesso interesse em que algum Globo Repórter desvende do que se compunha, de onde surgiu, que triste fim levou, se sumiu porque foi para a Record. E as novelas que ninguém, ninguenzildes da silva sauro parece ter acompanhado ou se dá ao menor trabalho de incluir em qualquer resgate de programação? Tipo (segurem esse forninho): Salomé; Começar de novo; Quem é você? (o mesmo lhe pergunto, quereeeda); Bang bang; Tempos modernos; As filhas da mãe; Antônio Alves, taxista (OK, era do SBT, meio que não conta – mas tinha Fábio Jr., gente); Três irmãs; Sabor da paixão; Desejos de mulher; Agora é que são elas. A total inacreditabilidade de tramas assim terem sido nossas contemporâneas bem vale um brevíssimo espanar nesse álbum maluco, por pura diligência arqueológica. Realmente brevíssimo. Pronto, chega.

E as madeleines insólitas em forma de brinquedo? Os monstrinhos-fantoches-boxeadores lutando ao som do jingle eterno (o que aliás é curioso para algo que jamais ouvimos): "Laaaango Laaaaango, Lango Lango Lango". O Vovô Alegria da Eliana – de olhos, óculos e nariz esbugalhados – exclamando frases nhoooom ao ter a barriga apertada. O fofíssimo Furby derretendo almas molinhas com suas tagarelices e olhares encantadores. O nojentíssimo NEB (boneco ET desgracento de feio, com vísceras de geleca) sendo diariamente estripado por futuros cirurgiões ou serial killers. O fabuloso Vira Monstro Vira Herói permitindo aos pequenos desenhar mil personagens distintos ao combinar e recombinar os moldes. O jogo dos hipopótamos comilões tentando devorar o maior número de bolinhas. Houve mesmo essas entidades, neste mesmo mundo? existiram de se pegar? Afora as animações e similares a que só podemos ter assistido em transe, nalgum criançaverso: Defensores da Terra, Candy, Cãezinhos do canil, O Vira-Lata, Feiticeira Faceira, Estrela Fascinante Patrine, Joca e Dingue-Lingue, Grande Polegar: detetive particular, O patinho Duque, Os Muzzarelas, Ursuat, Fantasminha legal. Posso ficar aqui encompridando a lista o dia inteiro, mas já estão todos suficientemente deprimidos e chocados com a amostra de tudo que não lembrávamos que nunca existiu. 

E se em alguns casos o cérebro, plantando silêncio por cima, determinou que muito nesse tudo realmente desexistisse – ssshhh, deixa quieto, não sou eu que vou persistir em acordar quem os neurônios sepultaram sob suas escolhas de afetos logísticos. Nenhuma saudade me obriga a exumar "tempos melhores": estão todos vivos e bem, aguardando lá na frente em estradas que sempre vamos construir agora.

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