quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

O vício do muito


Segundo uma interessantíssima frase da escritora austríaca Marie von Ebner-Eschenbach, "contentar-se com pouco é difícil; contentar-se com muito, impossível". Não é dessas falas de que se sai incólume. Que seja difícil contentar-se com pouco, vá: em regra os humanos somos mesmo (felizmente) movediços e queredores de melhorias; assim deve ser, e se chegamos até aqui é porque assim foi – ou seríamos criaturas exclusivamente voltadas para a sobrevivência, satisfeitíssimas da baixa expectativa de vida de nossos corpitos naturalmente frágeis, desligadas da arte, da filosofia, das ciências em geral. Beleza, pertencemos a uma espécie que quer mais. A segunda parte do aforismo já é mais intrigantinha: é impossível contentar-se com muito. Intrigantinha até a página 3, porém, uma vez que quem nasceu embalado na rede do capitalismo e devidamente informado sobre os precedentes mercantilistas & cia. há de refletir só um bocaducho antes de acenar que sim com a cabeça, como quem reconhece bem uma pessoa que vem dando problemas na família já de loooonga data. Yes, yes, meu amigo, é direitinho isso daí, pessoal em mais humildes condições tem até chance de se saciar com o seu tanto – mas os viciados numa riqueza obscena não se saciam nunca, nunca, nunca.

Porque é um vício, e particularmente hediondo. Se álcool, cigarro, drogas saem derrubando corpos e famílias, a fissura nesse muito-mor da posse ilimitada sai retroescavando apenas o mundo inteiro, cega, voracíssima, autodestrutiva inclusive – já que, ao que se sabe, não existia planeta alternativo até o fechamento desta edição. A fissura no muito é monstro engolidor de árvores, destruidor de ares, poluidor de águas, deformador de almas, roubador de artes, guerreador por petróleo, conspurcador de recursos, estuprador de culturas, manipulador de dados, especulador de abstrações, catalisador de tragédias, explorador de lutos, desempregador desdignificador escravizador coisificador de gente, privatizador do que é público, se-apossador do que é comum. Ao milionário consome a larica de ser bilionário, ao bilionário corrói a fome dos trilhões; mesmo ante a impossibilidade humana de aproveitar numa só vida os 87 imóveis, de passear nos 235 carros, de usar os 10.958 vestidos, de portar as 21.704 joias, todo lucro continua sendo inaceitavelmente pouco: urge fechar mais agências, demitir mais funcionários, vampirizar mais os remanescentes. Para quê? Para virarem 21.896 as joias inúteis.

A coisa é mais abissal quando se constata nas peças exploradas, esmagadas, demitidas, vampirizadas a mesma febre do ouro que atormenta esses Patinhas, Scrooges e Smaugs – só que sem o ouro. Nem entre vírus pandêmicos há contágio pior do que aquele que se verifica entre os magnatas zumbizados pela ostentação e os pobres mortais (ou mortais pobres) zumbizados pela impressão alucinógena de serem magnatas. Não vem do nada, claro; ricaços são mestres em – ou donos de – todas as estratégias de marketing amansadoras de gente assalariada; mas o sono de Kali Ma vai mil vezes além, e não somente anestesia vários dos que têm o coração arrancado como, pasmosamente, transforma as vítimas do sacrifício em tietes dos sacrificadores. Tamanha é a hipnose que os peões do tabuleiro se identificam não com quem são, mas com quem gostariam de ser, o que os persuade a expor seus pescocinhos individuais pelo rei no qual se enxergam em vez de se agruparem para o xeque-mate.

Milionaridades de vezes mais do que os outros vícios, o vício do muito, do tudo há que ser vigorosa e rigorosamente contido, sob pena de implodirmos o pouco espaço que temos na galáxia. Mais vale um bilionário maluco de algema na mão (motivo vai ter, não se preocupem) do que 102 jatinhos voando.

3 comentários:

Juliana disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Juliana disse...

É desesperador constatar os desdobramentos do acúmulo primitivo de capital. De fato não há limite para o querer mais, mesmo que isso signifique passar por cima de tudo o que nos faz humanos. Excelente texto, Fernandinha. Às vezes, pra despertar, preciamos mesmo colocar o dedo na ferida.

Fernanda Duarte disse...

Obrigadíssima, querida, pela leitura, comentário e carinho. Sim, a voracidade da acumulação nos transforma em Gollums em potencial... desumanizamo-nos substituindo o que é vivo por qualquer "precioso" de luxo. Queria viver para ver uma mudança substancial, mas...