terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Pangentileza


Para norte-americanos, com seu esparrame de celebrações diárias – umas históricas, umas fofinhas, umas engajadas, umas what-the-hellas –, hoje é o Tenderness Toward Existence Day, algo como um "dia da ternura para com a existência". Não sei por que 19 de janeiro, mas também não sei por que não, e achei o nome da festividade particularmente adorável. Ternura: o que poderia ajeitar quase tudo quanto anda desconcertado no mundo era a ternura, uma forma mais suave, mais lenta, mais contemplativa de amor, sem a urgência das modalidades de amor que demandam algum contentamento, alguma simetria. Na ternura vêm emaranhados respeito, carinho, empatia, enfofuramento, impulso protetor, fascínio das minúcias, em certa medida até orgulho macio da posse (quando é de posse que se trata), do convívio, da presença mesma; é combo melancólico mas açucarado, feito pôr do sol naqueles dias de temperatura acamurçada e desobrigação de tarefa na manhã seguinte.

Nossos primos do Norte, sobrinhos do Tio Sam, especificaram que a data é de ternura voltada para a existência, sem porém especificarem tanto a ponto de esclarecer se é a existência própria. Suponho que a ideia não seja permanecer em cercadinho tão restrito, mas não há como principiar ternuras senão a partir da individualidade, anyway: quem não se permite um olhar de brandura sobre a falibilidade a que está sujeito não vai, certamente, permitir-se um olhar de brandura sobre falibilidades alheias, uma vez que tende a carregar o amargo da autopressão que não se perdoa, não se desfrustra, não se conforma. Claro, ser-se terno nada tem a ver com ser-se permissivo, é inclusive oposto; consentir absolutamente tudo a si mesmo indica uma triste desistência de quem abriu mão de futuros, renunciou ao mínimo de autoestima necessário para investir na própria melhoria – tanto quanto pai e mãe permissivos em excesso renunciam ao esforço amoroso de educar e demonstram, em lugar de afeto, a máxima indiferença. Tratar-se com ternura demanda o não consentimento de errar somado à paciência de ter errado; a severidade que previne adoçada com o perdão que prossegue. Só os bastantemente mansos para acatar suas fraquezas sem concordar com elas conseguem, por extensão, caminhar delicado entre as fragilidades universais.

Todas as ternuras vêm dessa ternura inaugural – aquelas dadas às existências que vivem e às que não vivem, às que ainda são e às já sidas, às mui célebres e às extremamente anônimas. Quero crer seja essa a vibe da celebração americana, global, incondicional, trabalhada na pangentileza, na cosmodoçura: a transigência calma com a aranhazinha que é inquilina da última prateleira, a simpatia tácita pelo vizinho que rega flores, a alma marejada pela dedicatória soterrada no sebo ou pelo monograma bordado na peça de brechó, o tremer clandestino à descoberta da redação escrita aos nove anos, a pureza de comoção com a data de nascimento reproduzida no relógio, a tristura saudosa no guardar dos enfeites de Natal, a alegria de Mega-Sena ante a visita duma joaninha, a benquerença grátis pela noiva que chora no programa, a aflição solidária pelos passageiros de ônibus que se aglomeram na reportagem, o sorriso de bastidores à lembrança dum amigo imaginário, o miniesfacelar-se sobre o pequeno cadáver dum passarinho desabado, a nostalgia de ver vaga-lumes, o cotejar enamorado de estrelas, a memória emprestada ao bibelô de viagem. Ternura pelo miúdo das vidas, pelo flagrante do que foi, pela peça avulsa que metonimiza uma dor e um drama, pelo chão do cotidiano que é afinal onde erguemos tudo – nós-passarinhos às vezes desabados, à revelia pousados permanentemente. 

Ternura, esse amor de cetim. Esse amor de seda. Esse sistema de meditar para fora, adotando devagar tudo que é como se precisasse dum canto de ninar para ser consolado do tempo.

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