segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Graças


Hoje é Dia Internacional do Obrigado, coisa lindona mas insuficiente: nem se metralhássemos 80 mil agradecimentos por segundo, no rapidíssimo escorrer destas 24 horas, atingíamos os devidos alvos vivos ou mortos em sua todidão. Não tento; pior ainda ir pelo caminho de celebrar os credores mais importantes, já que fatalmente haveria esquecimentos imperdoáveis e, portanto, um nascedouro de mágoas onde se deveria formar uma piscina de de-boísmo. Me recuso a eleger alguéns próximos e conhecidos o suficiente para perceber a ausência de outros alguéns próximos e conhecidos, ou para perceber a própria ausência entre eles. Presta não. Assim sendo, e não se devendo permitir que a data escorregue invisivelmente, me atenho aqui a agradecer de coração balofo mas com endereço vago, exaltando os milagres sem anexar a ficha corrida dos santos.

Obrigada aos autores dos textos que me germinaram, adubaram, floriram. Obrigada pela teimosia inflamada com que se debruçaram sobre enredos, estruturas, diálogos, imagens, estilos, ideias, personagens; pelas artimanhas com que devassaram almas havidas e não havidas; pela agudeza com que arrancaram do mármore versos que pulsam até a veia dos mármores; pelo descaramento com que se entregaram fanaticamente à pena, à caneta, à máquina, ao computador para que um mundo ainda não parido nascesse. Obrigada pela potência cismada e cismadora que trouxe à tona tantas leituras que me atravessaram, às vezes desgrenharam, revolveram mas recompuseram – até que a substância do que sou se mais ou menos reunisse, afilhada de tão numerosos amadrinhamentos. O obrigada é logicamente extensivo ao roteiro de todos os filmes, novelas, séries que me entraram no DNA de saberes e crenças, de memórias e amores; sem seu convívio, sem seus olhares gotejados n'alma ao longo da vida inteira, eu seria dramaticamente outra (como todos seriam). Não há pedacinho do que eu pense ou faça que não seja herdeiro duma longa transfusão de ciências, de vivências, de referências. Não há nada em mim ou em ninguém que não teste positivo para os genes de cada sentidor antepassado, ainda que contemporâneo.

Obrigada aos que, diferentemente da maior parte dos anteriores, me conhecem ou conheceram – num esbarrãozinho de talvez segundos – e dedicaram qualquer infinitésimo de seu dia a melhorar o meu. Desde um amei vermelhito num post aleatório até anos compridos de ensino, desde uma bala oferecida até vários ombros doados, desde um elogio à bolsinha de moedas no caixa até a crítica amorosa ao texto, todas as bondades ligeiras ou extensas fiquem já e já correspondidas com mil abraços de juros, mil penhores duma sincera vontade de retribuição. Seja qual seja o perímetro de nossos laços, somos família não (só) compulsória, mas eletiva; espero desdobrar-me bastantemente para contemplá-los todos em meu testamento de afeto.

Obrigada enfim à mais imaterial das famílias eletivas, aquela nunca lida, nunca vista, nunca esbarrada, conhecida apenas de irmandade d'alma, ou antes pressentida: os parças de trincheira, parentes de luta, primos na defesa de tudo quanto é justo, são, igualitário, verdadeiro, límpido, antifascista, despreconceituoso, agasalhador. Gente que sobrevive coraçãomente intocada ao tiroteio de fakices, gente que passa com olhos resilientes por entre esgotos de ignorâncias, gente que não cala a boca para o absurdo falar, gente que simplesmente não consegue se conformar com infelicidades alheias – gente que amo (sem que venhamos sequer a suspeitar das respectivas existências) porque totalmente crucial para manter o mundo oxigenado e habitável. Irmãos que são árvores de ponderação sustentando a respirabilidade do planeta, obrigada. Impossível saber quantos terei a chance de conhecer na jornada; desde logo, porém, fica-lhes aberto meu endereço sentimental e estendida a companheirice da mão. Se algum de vocês ainda precisar, nestas nossas agitadas translações, dispor de esforçados ouvidos, amparos, respaldos, por favor: disponha.

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