sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Slipcast

Naquele Dicionário de tristezas obscuras de que já falei há meses e que às vezes revisito, para um ou outro gole de percepção poética, deparei interessantíssima a definição de slipcast (tento mais ou menos traduzi-la aqui de seu original em inglês): "a expressão-padrão para a qual nosso rosto automaticamente volta quando ocioso – divertida, melancólica, zangada –, o que ocorre porque uma forte emoção fica enterrada e esquecida na lavanderia psicológica do dia a dia, levando-nos a vestir um tom não intencional de rosa ou azul ou cinza, ou, em raros casos, um tie-dye de pura loucura". Nem preciso declarar solenemente o quanto adorei esse conceito do sentimentozinho que, embora inapercebido pela consciência no meio da "lavanderia psicológica", tem força e tinta suficiente para ser o alfa de todos os outros, para marcar território em cada pecinha de rotina que estamos batendo na máquina. Sem que propriamente escolhamos, vira nossa cara-default (defô, prefiro), nosso cartão de visitas emocional, com a diferença de ser cartão que estendemos ao não estendê-lo: o superego dormisca, a distração assume o leme e é essa vontade sonâmbula, mas sincera, que pinta à nossa revelia a capa do portfólio.

Podemos não lembrar nunca, nunquíssima o fora que levamos do Ataulfinho ou da Leovegildinha na quinta série, e ainda assim carregarmos eterno um ar de ferida que dói e não se sente, um quê de pássaro abatido em voo: na época bateu hemorragia, fratura imposta, cicatrizou depois – porém a asa não voltou a mesma; perdeu o desmedo, perdeu algo da envergadura. Podemos não passar horas da adultez escarafunchando nossas memórias de férias com os primos, ou de caça aos ovos de Páscoa, ou de correrias na praça com o primeiro pet, e termos enraizado no subsolo do olho o sopro das infâncias, um feitio moleque definitivo. Podemos não sintonizar as sinapses de propósito nas últimas notícias sobre Manaus, nos últimos casos escabrosos do Investigação Discovery, e apesar disso atravessarmos o tempo seguinte com um desalento, um descaimento, um desconsolo estampados em nosso outdoor involuntário. Podemos não ser de cotidiano agressivo, não deitar em nenhum divã cuspindo vespas a respeito de velhos abandonos, não levantar a voz por gosto nem hábito, e mesmo em desacordo com os prognósticos exibir, em stand-by, a raiva latente contra a coleção de burrices humanas. A coisa emana, a coisa nos escapa: pertence totalmente ao trecho de cérebro honesticida, de quase impossível vigilância e refratário a ordens diretas.

Quem espelhamos no por-fora tende a ser (no mínimo) alguns segundos mais ligeiro que o rosto vestido para fins sociais. É a mais genuína e mais selvagem roupa de andar em casa do por-dentro; ainda que a presença de alguém nos obrigue a trajar deliberadamente uma cara mais amável, mais atenta, mais alegre – de modo geral melhorzinha, prestável ao menos para ir ao mercado –, um tanto de nossa slipcast sempre slips, sempre escorrega em qualquer microinstante de desatenção e repouso. Nossa essência, basicamente, transborda feroz como a manga do pijama que foge do casaco, e os profilers agradecem, por sinal; não deixa de ser lindo e fascinante que nosso corpo seja incapaz de mentir todo o tempo, que nosso descanso de tela emocional se traia independentemente dos esforços em contrário, que nosso fundamento biológico se prove incorruptível a despeito de nossa corrupção, que enfim sejamos narradores transparentes para quem quer que esteja ouvindo. REALMENTE ouvindo.

No final dos contos, somos verdades ambulantes – ou mentirosos por esporte que vieram com o próprio antídoto de fábrica.

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