sábado, 2 de janeiro de 2021

Veredas


Assim termina a coluna algo desalentada mas alegremente lúcida (lucidez é alegria, sempre) do professor Jorge Coli na Folha: "Que remédio [para o caos de 2020, extensivo a 2021]? Receito estes: muita música, muita. E livros. E filmes. Arte sem moderação. Cultivemos nossos jardins, físicos e espirituais. Tudo isso nos alimenta: são coisas da assim chamada cultura, que os políticos vivem querendo tolher [...]. Lembram-se de Xerazade, que sobreviveu contando histórias toda noite para o sultão? Pois essas coisas são as nossas Xerazades, que nos mantêm vivos para enfrentar o dia seguinte". O autor arremata desejando dessas belas Xerazades a todas, a todos, e faço minhas; assim como Coli, não apenas desejo como recomendo, aconselho, encorajo o consumo de todas as possíveis manifestações da melhor criatividade humana, aquela que não loroteia nem barateia a verdade – transforma-a. Transforma-a em terra habitável, principalmente. Artistas irrompem sobre a realidade com uma colonização do bem, plantam, aplainam, povoam de universinhos o universal, levantam casinhas e alicerces onde nos encafifemos quando o mundo chove violento. Desde que nenhum desaprumo mental permita que essas narrativas nos bovarizem, em geral são elas mesmas que mentalmente nos aprumam.

Não há, convenhamos, melhor estágio de gente; enredos ficcionais dão veredas que não seguiríamos nunca do lado de cá da tela ou da página, nos põem conhecedores de sentires e viveres com que não esbarraríamos – e o que não é ficcional de qualquer modo nos entrelaça com outras subjetividades, outras percepções capazes de produzir o que não nos ocorreria produzir, de dizer o que não saberíamos dizer. Ou seja: todo ensejo é ensejo, em arte, de aprender humanidade; ora somos explicados e corroborados por uma voz irmã que nos faltava, ora somos assombrosa e assombradamente abastecidos por uma voz descoincidente que nos fugia. Ou passamos pela didática do espelhamento e compreendemos mais decentemente essa estranha primeira pessoa, ou engatamos a terceira cursando uma inesperada arqueologia psicológica (não raramente, fazemos as duas aulas simultâneas). Parados não ficamos; idênticos não saímos; uma vez abalroados por outras placas flutuantes, algumas ideias necessariamente nos terremotam.

Permanecer em jejum de arte, portanto, é circular subnutrido tempo afora. Certo: para muitos, muitíssimos, muitilhões, não há fartura na oferta, mal há possibilidade de acesso e contato. Mas para outros tantos jejuantes d'arte há acesso gordo e livre, o que não se dá é o movimento de aceitação, abraço, escuta; o que não se dá – e é bem justamente esse o estender de mão que milícias mentais procuram esganar no berço, minar na fonte – é a curiosidade festiva, honesta, de se aproximar sem orgulho nem pedregulho. Coordenadores de seitas como a bolsonarista (em todas as suas vertentes) são maus, são péssimos, são desprezíveis, mas burros não são; sabem perfeitamente do raio influenciador, do raio despreconceitador da arte executada com pensamento e gosto. Por isso mesmo lhes é fundamental demonizar o quanto podem aquilo que mora entre as coisas mais santas: a sensibilização, pela beleza e pelo raciocínio, à terra sem fim da necessidade alheia. De toda necessidade alheia. Quem cria dimensão empática e suficiente do outro – do que ele passa, enfrenta, ama, defende, deseja, sofre, lamenta, enxerga – é ferido de morte na mentalidade de culto secreto, seita descabeçada, excludente, maluca. Arte obriga a sentir e ver, sentir e ver obrigam a ponderar, ponderar acaba levando ao lado iluminista da Força; e não tem Baby Yoda que enfofure as motivações dos que só têm como objetivo infinitizar seu Império.

Infinitizemos, amados, nossa República de ternura e arte: que este e todos os anos sejam eternamente poucos para descobrirmos o que respira por aí aguardando ser aprendido. Mil e uma noites dão nem para a saída do que é essencial maratonar de mundo.

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