quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

O segredo dos seus olhos

Hoje faz 180 anos uma dama grandíssima, imensíssima das artes: Berthe Morisot – tão desconhecida de nome pelo mundão de gente que (com justiça, claro) venera Monet, Cézanne, Degas, Renoir, Manet, e no entanto tão impressionista e impressionante quanto seus coleguinhas pintores (do último que citei Berthe foi, inclusive, mais do que colega e amiga; virou cunhada, ao se casar com o irmão do artista, Eugène Manet – embora a fofoca da Ilha de Caras impressionista não tenha aqui a menor importância. I mean, tem um bocadinho, pelo que narro a seguir:). Berthe e sua irmã Edma estudaram arte desde cedito, pintavam juntas, até que Edma se casou, mudou-se, ficou mãe e passou, entre mil cuidadices domésticas, a contar com pouco tempo para os pincéis. Cartas consolavam ligeiramente a saudade, mas Berthe reclamava da distância entre ambas e entre Edma e a arte favorita; a outra, haja vista suas palavras para a caçula, não parecia lamentá-lo menos: "Tenho sempre você em meus pensamentos, querida Berthe. [Penso] estar em seu estúdio e poder escapar, nem que por meros 15 minutos, respirar a atmosfera que dividimos por tantos anos". Aquela face dolorosa, dolorosamente terna da vida quando muda.

Dolorosamente terno é a precisa definição do quadro mais famoso de Morisot, Le berceau (O berço), acima reproduzido. Se já é notável a agridoçura que salta da imagem sem qualquer contexto de contemplação – percebam os olhos entre exaustos e amorosos da mãe que vela, os olhos perfeitamente indefinidos e oscilantes do "que perfeição da natureza" até o "onde fui me meter" –, a impressão se torna ainda mais viva e comovedora ao sabermos que a mãezinha cansada é justamente a mana Edma Morisot; e o bebezito, sua filhinha Blanche Pontillon. Trata-se do exato flagrante, produzido pela artista "que permaneceu", da artista que de certa forma "se foi" após o advento de marido e prole; mais admiravelmente, trata-se dum flagrante ambíguo, que não julga a modelo nem se posiciona contra ou a favor de suas escolhas, permitindo antes que os pincéis captem o que considero uma das maiores inteirezas da maternidade: sua respeitável ambivalência.

Sono e devoção, ternura e desespero, remorso e encantamento, absolutamente tudo é cabível no olhar de Edma (Dostoiévski não o descreveria em menos de 48 páginas, acredito). Conforme alguém já observou, há uma tocante correspondência entre o braço esquerdo da mãe e o bracinho direito da filha, ambos apoiadores dos respectivos rostos – porém numa, eu diria, realmente sustentando o peso da cabeça (e de suas responsabilidades, por metonímia), e na outra descansando com entrega e leveza, próprias de quem se sente cuidado e possivelmente conservará os olhos sempre fechados ao impacto de sua existência sobre aquela outra. É o drama silencioso da entrega materna versus a realidade pouco romântica da parentalidade; a completude dum amor possante versus a quebra da individualidade antiga; a realização versus a frustração. É enfim humano, humaníssimo, atualíssimo a despeito das roupas e móveis de época: o gesto, o olhar capturados pela genialidade de Berthe atravessam gerações falando com fluência a língua de todas as mães que já velaram os filhos adormecidos, perguntando-se, fatigadas e inseguras, quem as velará.

Costuma ser – no mais amplo espectro de contemplados e de contempladores – onde se depositam todas as verdades: no olhar que se lança ao túmulo e no olhar que se envia ao berço.

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