sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Kaukokaipuu

Para os finlandeses, essa palavrinha lindônica do título representa a vontade de estar em um local distante, ou mais especificamente: a saudade dum lugar com que se tem alguma relação de ancestralidade e que, mesmo desconhecido, gera uma estranha impressão de pertencimento, como se essa terra outra fosse na verdade a uma – a nossa. Sei do que os irmãos nórdicos estão falando, embora não me encaixe perfeitamente nos critérios: não só não tenho (for the records) nenhuma porção de umbigo enterrada na França, e sim em Portugal, como já tive duas vezes a suprema graça de visitar a pátria do minichef Remy. Ainda assim me encaixo nos critérios, encaixe é coisa que a gente providencia quando apetece e acabou-se; não sou capaz de jurar, afinal, que não abrigue nenhum DNAzito fazedor de biquinho – na Europa é tudo perto, vai lá saber onde minha árvore genealógica andou balançando os galhos em happy hour? –, e além do mais sonhava acorrer a Paris muito antes de a qualquer outro recanto do Velho Cônti, incluindo o pedacinho de chão de uns meus avós. Realmente coube à França a prioridade. Apesar de sempre ter curtido literatura portuguesa, apesar de estar sanguineamente atada, apesar de provavelmente ser elegível para um passaporte luso (na marcha que o Brasil vem engatando, posso salva-vidamente precisar), jamais senti um ora-pois-pois clamando de fato nas veias, enquanto os voilàs gritam. Bufam também, um pouquinho.

Lembro-me d'eu menininhazita apaixonada pela capa de um caderno da Turma da Mônica, em que os personagens se ambientavam franceses com muita boina, Torre, fofura e romantismo; e não por causa dessa capa, mas contando com a participação dela alimentei desde logo uma ideia rosada, sedosa, florida do país representado, criei uma conexão esquisitamente espontânea com o lugar de que nada sabia na realidade, apenas intuía que me dava match. Um tico de anos adiante, fui desenvolvendo relações de devoção com as histórias de Santa Teresinha e das aparições de Nossa Senhora das Graças – tudo, por acaso, conectado à França. Certo, minha mãe não deixou de ter alguma culpa no olhar benevolente que cresci derramando sobre o lar de Rodin e Monet (ela que lá estivera em pequena e amou o país eternamente muito), porém não teve culpa tão larga tampouco; foram mais responsáveis os nossos escritores românticos, bastante afinados com o sentimentalismo francês e dados a epígrafes e mais epígrafes na língua de Victor Hugo. Meus olhos adolescentes tentavam ler, mas não faziam curso, nunca fizeram, foi só inglês que estudaram desde cedo – o que não os impede, hoje, de achar muito mais prazer em correr sobre a língua francesa (uma nossa irmã) do que sobre a inglesa. Esta é mais utilitária e mais íntima de tantas décadas; aquela, entretanto, ecoa mais doce, ressoa mais macia no peito, quase – supremo elogio – como se fosse português.

Isso não significa que eu fale mais de duas frases em francês nem que o compreenda falado, o que exigiria finalmente um estudo em regra. Não. Mas tenho por ele o carinho de quem talvez aprendesse com alegria se o ouvisse de manhã, à tarde e à noite no mercado, na boulangerie, na TV, no cinema, algo que eu não diria hoje de idiomas outros, especialmente não latinos. Se eu moraria na França num dia futuresco, a fim de viver essa imersão e confirmar o impacto prévio de entrar em Paris como quem volta para casa? Mais oui, mes amis. Se eu pretendo pra-valermente sair do Brasil? A ser sincera, não. É, pois, bastante provável que eu transcorra os anos neste pitoresco exílio em minha própria terra natal, a que amo e pertenço sempre (sem muita praticância), tendo como fundo de tela a kaukokaipuuística intuição de que há uma casinha no Montmartre que não estou habitando. Uma fissura sensível mas pacífica entre a porção adaptada, aninhada, aclimatada e preguiçosa que nasceu brasileira e a parte perplexa, arredia e expatriada que nasceu francesa; um embate perpétuo entre a responsabilidade compulsória – ALGUÉM tem de cuidar desta Pindorama, ora pitombas, não é terra de rapina e passagem não! – e a paixão escolhida. De um lado, o estar comprometido, consciente, engajado; do outro, o mal-estar que mais do que nunca sente os pinotes duma alma inatural daqui.

C'est la vie.

2 comentários:

Unknown disse...

Será que cada um de nós tem essa sensação kaukokaipuu de viver. Me sinto fora de casa a maior parte das vezes e achava que isso era loucura. Queria encontrar meu lar.

Fernanda Duarte disse...

Não, isso não tem nada de loucura, amore... Não creio que todos se sintam "misplaced", mas que isso é altissimamente comum, isso sem dúvida. Você vai encontrar seu lar ou será encontrado(a) por ele, cedo ou tarde; deixe-se sempre encontrável. 🥰🥰😘😘